Nos últimos dias, ganhou força o desejo dos Estados Unidos de que o Brasil volte a liderar uma missão multinacional para conter a violência no Haiti, a exemplo do que fez entre 2004 e 2017. O caos no país caribenho foi um dos assuntos tratados na reunião desta segunda-feira (5) entre o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e o enviado de Joe Biden, Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional, em Brasília.
No entanto, as condições políticas no Haiti e o cenário internacional são diferentes da primeira década do século 21, quando a missão de paz comandada pelo Brasil, a Minustah, foi aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU). Segundo o professor Ricardo Seitenfus, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e ex-representante da Organização dos Estados Americanos (OEA), hoje, Rússia e China vetariam a iniciativa, o que impediria o envio. À coluna, o pesquisador comenta as possíveis pressões americanas para o Brasil se engajar em uma nova missão no governo futuro.
Qual a sua opinião sobre a possibilidade de o Brasil voltar a liderar uma força multinacional no Haiti?
É bastante improvável, mas não impossível. Em 2004, mesmo que depois com contestações, havia autorização do Conselho de Segurança, portanto uma decisão do órgão supremo de manutenção da paz e segurança internacionais. Hoje, não é o caso. Sabemos que, em razão da situação na Ucrânia, a Rússia bloquearia, e a China tem dúvidas. A questão formal se apresenta de forma bastante distinta.
Por meio do Conselho de Segurança não sai porque haverá veto de Rússia e China. Qual a opção?
Oposição da Rússia e, mais do que uma dúvida, oposição também da China. Os americanos sabem disso e querem contornar o Conselho de Segurança. Ou através de um acordo bilateral entre o Haiti e aquele país que enviar tropas ou um acordo no âmbito da OEA. Aí começa a complicar porque a OEA, em princípio, não tem poder de intervir militarmente, mesmo com forças voluntárias, sem autorização do Conselho. Mas isso foi feito em 1965, inclusive com participação do Brasil, com a força interamericana de paz na República Dominicana. Portanto, há um precedente. A melhor solução seria um acordo com o governo haitiano, que já solicitou isso. Ocorre que o primeiro-ministro foi designado pelo presidente Jovenal Moise dois dias antes de o mandatário ser assassinado. Então, temos um primeiro-ministro que não foi empossado e as ausências de presidente e de parlamento. Portanto, essa solicitação pode ser colocada em questão não somente pela legitimidade mas pela legalidade. Além disso, ao contrário de 2004, há unanimidade no Haiti contra a presença militar. Todos os partidos políticos se opõem. Em razão da cólera, dos estupros, devido ao fato de que não resolveram nada. Pode haver razões escondidas, mas dizem que uma missão militar não importa.
Se forças armadas for inviável, fala-se em uma força policial. Mas de qual Estado?
Policial o Brasil poderia enviar, tem know how de lutar contra gangues, mas quem o faria? A Polícia Federal (PF)? A Polícia do Exército não, porque seria Exército. Seria ou a PF ou polícias estaduais, como a Brigada Militar. O governo eleito tem dificuldade de diálogo na PF, como vimos nas últimas semanas. Vai ser muito difícil se comprometer em enviar policiais federais. Segundo que são pouco numerosos. Sobre a possibilidade de uma polícia estadual, qual? Qual governador se colocaria à disposição? Nessa transição, não vejo solução policial antes de 1 de janeiro.
Qual o interesse dos EUA ao pressionarem o Brasil a enviar nova missão?
Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, está em Brasília porque o tema central do governo americano nas relações com o Brasil é o Haiti. O resto é o resto. Amazônia, Ucrânia, tudo isso não tem importância. A prova é que enviaram um funcionário responsável pela segurança interna dos EUA. Eles estão muito preocupados com os "boat people" (refugiados), imigração. Os EUA não enviaram o secretário de Relações Exteriores, um enviado para falar de diplomacia ou comércio. Mandaram o encarregado da segurança nacional. E hoje essa questão é dos "boat people". Acho que estão exagerando, sempre houve refugiados, é um drama pessoal, de dezenas de pessoas. Mas o fato é que a situação no Haiti se tornou insustentável para americanos e canadenses. Eles querem uma solução. Começaram a negociar com o México, tanto que o país promoveu duas resoluções no Conselho de Segurança: uma para colocar empecilhos a políticos e empresários haitianos, e outra para o envio de uma missão policial. E essa segunda não foi adiante porque o México considera que intervenção armada em outro país é algo inaceitável quando não há risco de genocídio, de massacres. Por isso o México não participou da Minustah. Sabe que se problemas internos forem motivo para intervenção externa... Já pagou o preço por isso. Perdeu metade do território para os EUA. Eles sabem que têm de manter essa política de não intervenção.
Inclusive a Constituição brasileira também proíbe intervenção externa fora dos auspícios das Nações Unidas.
Isso que Celso Amorim deve ter dito a Jake Sullivan. O americano vai responder: "Mas não consigo convencer os russos". Então qual a solução? O argumento de Amorim deveria ser: "A gente tentou o 6,5, entre o artigo 6 e 7, da Carta da ONU: manter a paz e, ao mesmo tempo, construir a paz com desenvolvimento econômico e social. Mas vocês (os EUA) não responderam. Só queriam nos colocar lá com militares. Amorim deve dizer: "Vocês têm de nos prometer, com orçamento, um mini Plano Marshall de desenvolvimento para o Haiti. A segunda condição é que, paralelamente, a esse mini Plano Marshall e a uma presença policial, uma mediação internacional para resolver o nó político. Os haitianos não se entendem: são 266 partidos políticos. É um drama. Como se negocia com todas essas legendas? Já propus ao embaixador do Brasil no Haiti, ao embaixador do Haiti nos EUA, uma mediação internacional robusta: ou fazem certas coisas ou nós cortamos o visto de entrada nos EUA. Algo que tenha consequências às posições dos haitianos: seja de esquerda, de centro ou de direita. Isso só uma mediação internacional pode fazer. Propus que o ex-secretário-geral da OEA o embaixador João Clemente Baena Soares seja essa pessoa. O Brasil não tem dupla agenda no Haiti, não tem jogo escondido. Pode ser mediador com credibilidade.
Como está a situação de segurança no Haiti, desde o assassinato do presidente Moise?
Está horrível, já antes do assassinato. Essa é outra questão: os EUA, o serviço secreto, sabem, têm várias informações. Prometeram um relatório ao Congresso, e o que saiu foi um texto de uma página e meia. Amorim deve dizer: "Vocês têm de nos dizer quem está por trás desse assassinato". Hoje, só se tem os nomes dos executores, mercenários, ex-militares colombianos, alguns haitianos, mas quem está por trás ainda não apareceu ainda. Os americanos têm informações porque isso tudo foi armado em Miami, passando pela República Dominicana, outro ator importante que tem jogo duplo. Essas condições permitiriam que o Brasil pudesse acariciar a ideia de mandar policiais. Não digo que mandaria, mas que pudesse pensar.