A eleição de um candidatos, um plebiscito ou qualquer outro processo político não vai para frente, em uma democracia, se não houver respaldo popular. O "rechazo" chileno à nova Constituição, depois de dois anos da revolta que começou antes mesmo de o mundo conhecer o significado da palavra coronavírus, é prova disso.
Polarização política, desinformação e muita manipulação tiveram lugar na disputa chilena. Mas o retumbante resultado das urnas - com mais de 60% dos eleitores dizendo "não", em uma votação obrigatória pela primeira vez na história do país - demonstra que nada a fórceps irá passar. A menos que estivéssemos tratando de um ambiente de ruptura institucional, o que não é o caso.
No cenário chileno, por mais que a população esteja cansada, pedindo reformas por mais igualdade econômica e social - além de uma nova Constituição que sepulte de vez a era Augusto Pinochet, ela também provou, no domingo (4), que não aceitará qualquer coisa no lugar.
A sociedade chilena mostrou que não irá admitir decisões sem diálogo - e isso, tanto Chile quanto a Argentina e o Brasil têm a aprender. Direita e esquerda, independentemente dos ganhadores de processos eleitorais, terão, em algum momento, de sentar para dialogar.
O processo da escrita da nova Carta Magna chilena teve erros de comunicação - do governo, da Convenção Constituinte, das instituições e da imprensa. Houve pouca autocrítica, ao reconhecer erros, e intransigência em acreditar que, ao rejeitar a velha Carta Magna, os chilenos aceitariam qualquer texto. Todos falham - inclusive nós, jornalistas - quando fake news e outros mecanismos de desinformação tomam lugar no debate público. E, não obstante, foi o que ocorreu no Chile, quando eleitores chegaram a ficar em dúvida se perderiam suas propriedades ou se os chilenos deixariam de ser "chilenos" como povo - isso porque a nova Constituição reconheceria os direitos das nações indígenas em um Estado plurinacional.
É estranho uma rejeição tão grande - mais de 60% - à Constituição quando mais de 80% disseram que não queriam o antigo texto. Mas não é difícil imaginar que os chilenos estão cansados do que está aí. Mas também não querem o que foi proposto.
O cenário que se abre agora é de incertezas para o presidente Gabriel Boric, de esquerda e oriundo dos protestos de 2011, por igualdade nas condições educacionais, e de 2019, contra tudo e contra todos.
Um dos empecilhos a partir de agora é o fato de que, segundo a lei eleitoral, não é possível realizar nova eleição de integrantes de nova Assembleia Constituinte em menos de 125 dias depois do plebiscito de domingo. A escolha de comitê de especialistas, constitucionalistas e advogados para que redija a nova carta criaria uma comissão de iluminatis, acima da Assembleia Constitucional.
Qualquer decisão, agora, precisa passar por uma grande discussão que esteja acima das ambições partidárias ou ideológicas - e valorize o bem comum. E o primeiro passo é respeitar a decisão da maioria dos chilenos, na eleição que escolheu os membros da Assembleia Constituinte que escreveu o texto. Qualquer decisão que passe ao largo dessa base será mudar as regras do jogo com a partida em andamento.