O arroio Cheonggyecheon, em Seul, era pior que o Dilúvio. Tratavam aquele córrego com tanto desprezo que, em 1976, decidiram concretá-lo – ninguém aguentava o mau cheiro, o lixo, as inundações e o aspecto pestilento do riacho. Mas, sem o arroio, a capital coreana ficou mais quente. E a poluição do ar aumentou.
Com a cidade crescendo sem parar, em 2003 o prefeito Lee Myung-bak – que mais tarde seria presidente da Coreia do Sul – liderou um projeto ousado: mandou retirar a cobertura do riacho, derrubou um viaduto e, com a ajuda da iniciativa privada, entregou à população o mais espetacular córrego urbano do mundo. O Cheonggyecheon, hoje com água tratada, pequenas cachoeiras, arquibancadas e calçadas no mesmo nível da água, agora é palco de piqueniques, recebe engravatados no intervalo do almoço e enfeitiça qualquer turista.
Meu sonho é ver algo parecido no Arroio Dilúvio. Não é delírio, não: financiamentos internacionais já bancaram obras maiores em Porto Alegre. Mas o nosso riacho, como uma vez escreveu o David Coimbra, ainda é tratado como valão.
Em 2010, o poder público retirou as pedras grés que revestiam os taludes do arroio – no lugar, instalou vulgares placas de concreto. Não que o grés seja grande coisa, mas as pedras estavam ali por um motivo: porque se harmonizavam com o conjunto do riacho, com seus canteiros, suas pontes históricas. Aliás, nossas pontes são muito mais bonitas que as do córrego coreano.
Por outro lado, justiça seja feita: a gestão passada investiu R$ 463 milhões em tratamento de esgoto. Só que milhares de casas e prédios, até hoje, não se conectaram às novas redes e seguem despejando seus efluentes no Dilúvio. Sabemos também que não é o poder público que picha, vandaliza e joga lixo no arroio.
A PUCRS, que construiu uma nova ponte sobre o riacho, tem se dedicado a restaurar 1,5 quilômetro do canteiro central da Avenida Ipiranga. Paisagismo, ajardinamento, 36 postes com intervenções artísticas, totens com informações, grama bem-aparada, tudo isso traz uma ponta de esperança. A autora do projeto é a arquiteta e urbanista Dulce Dias Carlos, outra sonhadora:
– Iniciativas como essa, aos poucos, vão engajando as pessoas. A população começa a tomar gosto, o poder público percebe o potencial. Se o arroio fosse despoluído, imagina, poderíamos trabalhar com chafarizes, com o próprio Dilúvio irrigando as plantas, com deques e paradouros aproximando o pedestre da água.
Repito, não é um delírio: se passamos décadas de costas para a orla e, agora, ela é a grande sensação da cidade, por que essa consciência seria impossível em torno do Arroio Dilúvio? Alguns sonhos se realizam.