
- Oi, Vi! - disse ela sorrindo, e o namorado respondeu com um beijo na boca.
Devia se chamar Vinícius, talvez Vicente. Sentou-se à mesa conosco, pôs a mão esquerda na perna dela e ergueu a direita, pedindo um chope. Nós quatro o cumprimentamos.
- Prazer: Pedro Henrique - ele informou.
Ué. E o Vi ali do início? Abri a boca para perguntar, mas levei um chute por baixo da mesa. A Flavinha, que já conhecia o casal, me olhou com cara feia e espichou o pescoço para cochichar:
- É uma abreviação de Vida!
- Vida... - murmurei, com o olhar distante, a batatinha esfriando na mão.
Concluí que a moça o chamava assim havia muito tempo - tanto tempo que, lá pelas tantas, Vida tornou-se o nome do Pedro Henrique, e Vi, o apelido. Que coisa. Não sei se gostaria de ser chamado de Vida. É uma grande responsabilidade. Digamos que um dia, por algum motivo, eu terminasse com a minha namorada: ela perderia a Vida, o que costuma ser chato.
Mas, claro, cada um com seus códigos. Essas formas de se tratar, todo casal tem as suas e, no fim das contas, "Vi" soa tão singelo que nem parece carregar todo o peso de uma vida. Diferente do marido que chama a mulher de Mãe, por exemplo. Mãe é brabo.
Se bem que, se o pai está abraçado com o filhinho de três anos no sofá da sala, aí resolve dizer "Mãe, alcança para nós o controle remoto", tudo bem, é um contexto diferente do cara na alcova com a mulher dizendo "boa noite, Mãe". Credo, Nêga Véia cairia melhor. Aliás, meu amigo Alexandre Elmi escreveu no Facebook que se referir à mulher como Nêga Véia é "uma babaquice". Pois não só discordo como considero Nêga Véia o mais alto degrau de uma relação afetiva: ficante, namorada, noiva, esposa e, por fim, no ápice da cumplicidade conjugal, Nêga Véia. Homem nenhum larga uma Nêga Véia, acredite.
Mas, ainda que Mãe e Vida não façam muito o meu estilo, chamar o companheiro da forma que bem entender é um direito constitucional, sabia? "São invioláveis a intimidade e a vida privada", diz o artigo quinto da lei suprema. Quer dizer: todos têm o direito de ser abobados no plano íntimo. Todos têm o direito de amar.
Inclusive o Júlio e o Lucas, dois baita homens de 1m85cm que moram no meu prédio e se chamam de Bebê. Inclusive a moça do início do texto, que hoje atende por Daniela e chama o Pedro Henrique de Vida, mas alguns anos atrás atendia por Daniel e gostava pouco da própria vida.
Por isso, não há chance alguma de esse Estatuto da Família - cuja votação terminou na quinta-feira passada, em uma comissão da Câmara, definindo família como a união entre um homem e uma mulher - prosperar fora do Congresso. O Supremo Tribunal Federal vai derrubar rapidinho, com base na Constituição. Sei disso porque entrevistei o ministro Marco Aurélio Mello. Sei disso porque ninguém, enquanto houver democracia, poderá violar a minha intimidade - nem me impedir de chamar minha namorada de Nenezão do Pápi.
*O colunista Paulo Sant'Ana, titular desta seção, encontra-se em tratamento de saúde.