Você percebeu que seu celular tem falado cada vez mais com você? E que essa voz é geralmente de uma mulher? Siri, Alexa, Waze, Google Maps. Eis aí uma curta lista de aplicativos que falam com você na voz de mulheres. É como se a identidade secreta das máquinas fosse, a partir de agora, feminina.
Na época do desktop, em que conversávamos com as máquinas usando o mouse e o teclado, era raro escutarmos as máquinas falando conosco. Mas, agora que temos aplicativos cochichando em nosso ouvido, ganhamos uma companheira mulher.
As pistas da identidade secreta das máquinas já estavam entre nós. A sua secretária eletrônica, a voz pré-gravada da operadora de telemarketing, todas essas poderiam ter ganho vozes metalizadas, como se fossem feitas de alumínio e aço. Mas não, elas foram criadas à imagem e semelhança de uma mulher.
Até a ciência tem sido usada para facilitar nossa identificação com as máquinas. O Teste de Turing, por exemplo, coloca à prova a capacidade das máquinas em demonstrar comportamento inteligente equivalente ao dos humanos desde a década 1950. Temos ensinado as máquinas a serem previsíveis como nós desde o começo.
Além disso, precisamos considerar que criar vozes de aplicativos é algo caro, muito caro. E, para que Siri ou Google Now sejam produtos rentáveis, eles precisam ser amigáveis ao usuário, ter “empatia”.
É por isso que existem mais de 50 formas de você gargalhar com a Siri, ou porque chatbots são treinados para evitar perguntas sobre sexo, política e religião.
Mas por que justo as máquinas feitas para receber ordens, como a Siri e a central de telemarketing, têm que ser mulheres? Em um mundo em que, no trabalho, já há tantas divisões por gênero, será que não podíamos ter sido mais criativos?
A ficção nos ajuda a buscar motivos. Na animação Os Jetsons, a governanta do futuro se chamava Rosie. Rosie era empática, cuidadosa, mulher “exemplar”. Rosie foi criada na ficção para ser os anos 1950 do futuro. A transformação foi tão radical que no processo perdeu até sua provável cor, negra, para adotar o tom cinza.
A ficção imita os limites da vida, e isso se aplica a como nos acostumamos a definir a identidade de Siri. SUSi, chatbot assistente do Sistema Único de Saúde (SUS), é mulher – como mais de 80% das enfermeiras no Brasil – e negra, como mais de 60% das enfermeiras o são.
Existe um estereótipo velado de divisão de trabalho que estamos transportando para o mundo virtual. Alexa, assistente da Amazon, faz suas compras de casa, liga sua TV, fecha as cortinas; só falta trazer a cerveja, bem gelada. Alexa é meio Amélia. Melhor seria se ela fosse mais Bethânia, Elis ou Tarsila.
(Este texto foi coescrito com Debora Albu, feminista, mestra em gênero e desenvolvimento pela London School of Economics e usuária de vozes de celular.)