É certo que fogo queima e água molha e pouca coisa na vida é tão absolutamente verdade quanto estas premissas que abrem a coluna. A frase de apoio logo no começo do texto vai desembocar no futebol e suas verdades nada absolutas. Embora dê muita vontade, em quem torce, de decretar irreversivelmente a qualidade ou o defeito do profissional que trabalha no clube do coração, o futebol não se cansa de relativizar verdades pretensamente indiscutíveis.
Não fosse assim, como explicar que um treinador que passou os primeiros anos da carreira acumulando eliminações e vice-campeonatos, como Abel Braga, fosse campeão da Libertadores e do Mundial? Como entender que Vagner Mancini tivesse no mesmo currículo um título de Copa do Brasil com o Paulista, de Jundiaí, enfrentando o gigante Fluminense treinado, à época, por Abel Braga um ano antes de se consagrar em 2006 vestindo vermelho?
O Mancini que contabiliza pencas de rebaixamentos tem uma faixa nacional no peito que Roger Machado, por exemplo, ainda não tem. No rol de perguntas constrangedoras, como compreender que Jorge Jesus tenha feito o trabalho espetacular que fez no Flamengo em menos de um ano e depois disso tenha somado eliminações em fases preliminares de Liga dos Campeões?
O Cuca campeão brasileiro por Palmeiras e Atlético-MG, onde também ganhou Libertadores, passou miseravelmente no Grêmio que caminhava para o rebaixamento em 2004 e viveu o constrangimento de ter sua contratação pelo Inter cancelada diante da resistência da torcida pela perspectiva de sua vinda para o Beira-Rio. Como é que faz?
Arriscando uma resposta à quantidade de perguntas feitas até aqui, o colunista diria que tudo é uma questão de contexto. Eu já cometi o erro de ser definitivo ao conceituar profissionais que se mostraram extraordinariamente incompetentes sob meus olhos de comentarista e tive que desdizer porque depois o mesmo profissional trabalhou de forma brilhante para ter sucesso noutro lugar. Noutro clube. Ou, resumindo, noutro contexto.
Treinadores, humanos que são, aprendem com os próprios erros. A chave da evolução do homo sapiens é errar erros novos, não os mesmos que já errou. Quem consegue esta façanha, cresce. O cenário em que o treinador se insere também contribui para determinar seu sucesso ou fracasso. Cacique Medina fez um não-trabalho no Inter, e o Vélez Sarsfield acreditou mais no treinador que fez sucesso no Talleres e menos no que fracassou no Brasil.
Entendeu que, na Argentina, Medina voltaria a um contexto em que trabalha melhor, se sente mais seguro e confiante. Pois o Vélez Sarsfield eliminou o River Plate na Libertadores e na fase seguinte já ganhou o jogo de ida do Talleres, joga pelo empate para ser semifinalista.
Impensável para quem visse sua falta de rumo nas decisões que tomava comandando o time do Inter. O Flamengo parece ter desistido de contratar treinador tendo como premissa não ter nascido no Brasil. Errou grosseiramente trazendo o português Paulo Souza, que não pode ser mau treinador se vinha da seleção polonesa.
Não há treinador burro
Ninguém treina uma seleção europeia sendo incompetente. Mas Souza foi no Rio de Janeiro. Muito. Para seu lugar, os dirigentes cariocas viram em Dorival Júnior a melhor solução. O brasileiro fazia funcionar em curtíssimo tempo o modesto Ceará neste Brasileirão.
O Flamengo precisava de alguém que funcionasse em tempo recorde para não perder a temporada. Dorival Júnior está respondendo a pleno à necessidade flamenguista, mas antes de ser contratado pelo Ceará estava preocupado em cuidar da saúde abalada pela Covid e por uma cirurgia cardíaca. Dorival viu no Flamengo a grande chance de retomar o padrão de carreira que tinha em 2010, quando formatou o espetacular Santos de Neymar e Ganso campeão da Copa do Brasil. Está conseguindo.
Não existe treinador burro, combinemos. Há os mais ou menos capazes, sim. Há os que evoluem e mudam de patamar, os que involuem e viram sombras de si mesmo, o que também não é definitivo. Depende da liga que dê com os jogadores, da correta leitura que faça da característica de quem compõe o elenco, da confiança do dirigente que o contratou, do quanto aprendeu com os erros anteriores, do quanto desaprendeu por soberba.
O Luiz Felipe que não conseguiu tirar o Grêmio do Z-4 no ano passado é este que vai decidir vaga com o Flamengo na Copa do Brasil e está decidindo vaga na semifinal da Libertadores contra o Estudiantes de la Plata. É o do 7x1 de 2014, é o do penta de 2002.
Mano Menezes parecia um ex-treinador quando ficou um ano sem trabalhar. Seu trabalho imediatamente anterior à parada foi muito ruim. O Inter deu a ele a chance de renascer, só seria possível se Mano não se repetisse. É o que o técnico colorado aprendeu. E merece ficar para 2023.
Roger Machado é jovem e tem faixa de campeão estadual. Ótimas ideias, alguma dificuldade de lidar com o mundo do futebol, que pode ser cruel e injusto, mas é como é. Se levar o Grêmio de volta à Série A, não há melhor treinador para formatar um time competitivo no ano que vem e evitar qualquer risco de novo rebaixamento.
Por tudo o que você leu até aqui, cada vez é mais importante o dirigente saber exatamente o que quer para sua equipe quando escolher um treinador. Ainda que continue sendo fácil cortar-lhe a cabeça e servi-la na bandeja caso tudo dê errado, muito melhor será realizar a escolha com critério, estudo, diálogo, paciência e, especialmente, convicção.
Como convicção teve a direção do Liverpool ao trazer Jurgen Klopp e vê-lo ser vice-campeão inglês, da Copa Uefa e da Liga dos Campeões mantendo intacta sua crença de que o treinador viria a colocar taça no armário. Tem custo ser convicto e bancar a escolha feita. Mas o benefício pode ser muito, muito maior.