O nebuloso episódio envolvendo Anderson Daronco e Hulk na rodada passada do Brasileirão talvez tenha sido o auge mais recente da tensão entre quem tem a autoridade do apito e quem se sente prejudicado por ela. O jogador do Atlético-MG jurou em nome dos quatro filhos que o árbitro lhe teria feito velada ameaça de que cuidasse o que diria aos microfones porque ele, Daronco, trabalharia em outros jogos do time mineiro.
Procurado, o árbitro gaúcho não quis falar a respeito. É muito grave a fala de Hulk, porque ela atribui a Daronco um tom ameaçador que jamais apareceu em qualquer contexto anterior, ainda que o seu porte físico impressione e intimide os desavisados. No jogo seguinte do Atlético-MG, Copa do Brasil, Flamengo, Maracanã, Hulk deu entrevista depois do jogo reconhecendo o mérito dos cariocas na classificação, mas se queixando que não foi marcada nenhuma falta sobre ele durante a partida inteira.
Só no Brasil se vê tanto desrespeito à arbitragem a cada rodada de Brasileirão ou Copa do Brasil. Mesmo na Argentina, também América Latina, não há nada similar ao cerco que os jogadores fazem ao juiz, à maneira como a ele se dirigem, a distância exígua e incômoda que ficam face a face com o cara do apito.
No contexto do futebol brasileiro, todo árbitro entra em campo partindo do princípio de que haverá reiteradas tentativas de ludibriá-lo, uma porca malandragem. Aquela que todo jogador nascido aqui abandona quando se transfere para o futebol europeu.
O mesmo jogador brasileiro retoma o comportamento casados x solteiros quando volta a jogar em gramados tupiniquins. Porque nas bandas de cá, combinemos, está aceito pelos agentes do futebol que se possa quebrar vidro de ônibus de delegação visitante a tijoladas. Que jogador se esmere na missão de enganar o árbitro alegando pênalti, falta ou agressão no rosto quando a mão do rival dá na altura do ombro.
Porque no Brasil, em julho de 2022, ainda há quem releve os métodos heterodoxos como inventividade do jogador na busca por uma vantagem no jogo. Mais grave do que relevar, há quem elogie a iniciativa antidesportiva como se qualidade fosse. Como há os defensores dos sinalizadores proibidos que enfeiam o espetáculo, tiram a visão do campo e atrasam a partida. Alega-se que a festa não pode ser tolhida com excesso de regras porque, afinal, aqui não é a Europa.
Porém, o conflito Hulk x Daronco avança o sinal. Se o árbitro de fato pediu cuidado ao jogador quanto ao que diria nas entrevistas, excedeu. Caso Hulk esteja mentindo sobre o conteúdo da fala de Daronco, virou o fio. Haverá novos encontros entre um e outro, como faz para zerar a conta?
O mundo do futebol apresenta muitas cenas particulares que precisam de atenta interpretação para não se incorrer em erro. No intervalo de Atlético-MG x São Paulo, por exemplo, Hulk e Daronco riam como velhos amigos no grande círculo antes do recomeço. Em lance que me pareceu de pênalti sobre Hulk não marcado por Daronco, o jogador vociferou, encarou os músculos do árbitro e depois ficou repetindo "vergonha" como se a decisão do apitador estivesse viciada no intuito de prejudicar o Atlético-MG.
No Brasil, jogador alega falta não sofrida. O resultado é, na maioria das vezes, um conjunto vazio, mas suficiente para acionar o gatilho que atira a torcida contra o juiz. Uma das cenas mais comuns é o jogador alegar uma falta não marcada, a câmera fecha no rosto dele, que abre um sorriso sugestivo, algo que pretenda significar "este juiz só pode estar brincando ao não marcar esta falta..."
No início dos anos 80, havia um árbitro, Carlos Martins, que tinha regras rígidas de relacionamento com o jogador no campo. Lembro de tê-lo ouvido elogiar Zico que, como capitão do Flamengo, se encarregava de não deixar os jogadores cercarem o juiz como se fossem apaches em torno da caravana. Nos anos 1970 e 1980, aliás, os tempos permitiam outro tipo de tratamento.
José de Assis Aragão, por exemplo, veio apitar Inter x Flamengo, no Brasileirão 1988. O meia Luvanor caiu na área colorada, esperou pelo apito que apontasse pênalti, o som do apito não pintou, o meia goiano reclamou acintosamente ainda sentado no gramado, tiro de meta. Aragão, eu vi, estava atrás do gol como repórter, começou a dizer a Luvanor "levanta e olha pra mim pra ver se eu não te ponho pra rua". Depois, com Luvanor já de pé, foi para o meio do campo ao lado do jogador flamenguista. Já não pude ouvir o que dizia, mas creio que reiterava a ameaça de expulsá-lo se insistisse em reclamar.
Na década de 1970, Dulcídio Vanderlei Boschilia foi dos grandes árbitros brasileiros. Seus métodos não eram politicamente corretos. Quando o jogador reclamava dele, Boschilia gritava de volta "vai jogar tua bolinha que tu ganha mais, me larga de mão". O atacante Rui Rei, da Ponte Preta, decidiu encarar Boschilia na final do Paulistão contra o Corinthians em 1977. Recebeu cartão vermelho no ato, seu time ficou com um a menos, Corinthians campeão.
Hoje, com câmera em tudo que é lugar do estádio virada para o campo, me surpreende que jogadores ainda tentem cavar faltas ou expulsões no time adversário. Os árbitros não se autorizam mais utilizar a linguagem chula e bem compreendida pelos jogadores tal como fazia Dulcídio Vanderlei Boschilia. O jogador, sim. Sobram leituras labiais deixando claro para onde o jogador manda o apitador quando se sente prejudicado.
Imagine se o árbitro ainda pudesse responder na mesma moeda como fazia o paulista que apitou Inter 1x0 Cruzeiro, na final do Brasileirão 1975, e São Paulo 0x1 Grêmio, na decisão do Brasileirão 1981. Ou mesmo José Roberto Wright, juiz de Inter 2x0 Corinthians, na final do Brasileirão 1976, e protagonista de uma polêmica reportagem no Esporte Espetacular em 1982. Wright entrou com microfone escondido no uniforme, os jogadores de Flamengo e Vasco da Gama não sabiam. Ficou claro que o árbitro tratava de um jeito os capitães Zico e Roberto Dinamite e de outro jeito meninos em início de carreira, como o meia Giovani, o jogador mais xingado pelo árbitro naquele clássico pela amostragem da matéria.
Dos árbitros recentes, o que mais conseguia colocar a relação com os boleiros no bolso era Leonardo Gaciba. Apitava firme, fechava a expressão de rosto logo depois do apito, se virava para o jogador faltoso e, ato contínuo, abria um sorriso enquanto explicava a ela sua marcação. Eu o elogiei pessoalmente quanto à forma de conduzir o jogo. Está faltando mais Gaciba na arbitragem brasileira. E segue faltando também, é verdade, investigar profundamente o episódio Daronco x Hulk para o bem da arbitragem e do futebol brasileiro.