Não é, definitivamente, a profissão mais imune ao estresse do mundo, esta de técnico de futebol. O episódio da semana envolvendo os portugueses Jorge Jesus e Paulo Souza só explicitou na máxima medida a realidade diária dos treinadores nesta geografia tão particular do mundo da bola. Na Europa, nossa baliza em termos de comparação do que funciona, as coisas acontecem num nível mais civilizado.
Se Pep Guardiola e Jurgen Klopp nunca foram demitidos dos clubes em que trabalharam, até o multicampeão José Mourinho já foi mandado embora. No entanto, é raro de acontecer uma demissão de técnico em meio às competições. Mais bissexto ainda é ocorrer uma quebra de ética onde um treinador se oferece para trabalhar num clube que tem um profissional empregado. Por aqui, dada a precariedade das relações entre técnicos e dirigentes e mesmo entre colegas de profissão, toda semana ou todo mês tem notícia de uma quebra de contrato traumática. O técnico que está no desvio sabe que aquela pode ser a chance de voltar ao mercado. O que está empregado sabe também que, quando estiver no desvio, pode ocorrer a favor dele. E assim, literalmente aos trancos e barrancos, vão se estabelecendo as relações de trabalho.
Veja Eduardo Coudet. Na Argentina, recusou-se a sair do Racing antes do fim do contrato. No Inter, deixou o clube fazendo parecer que não havia outra coisa a fazer. Agiu como se o Inter não lhe tivesse deixado outra opção. Fale 10 minutos com Marcelo Medeiros, então presidente colorado, e ouça seu depoimento sobre como tentou demover o argentino de sair do Inter em meio a um trabalho que a direção respaldava. De nada adiantou. Mas não deixe também de falar com Paulo Roberto Falcão, se conseguir, para escutar dele o que foi a pantomima de sua contratação pelo Inter em 2016, quando ficou um mês no cargo e foi demitido. Imagine um treinador que assume ainda no primeiro turno de um campeonato de pontos corridos e não consegue ter mais de 30 dias de trabalho antes de ser mandado embora como se a culpa do que acontecia fosse dele.
Falcão, ídolo colorado, viveu esta cena bizarra. Do lado do Grêmio, vá às areias de Ipanema e converse com Renato Portaluppi, o homem que virou estátua, para ter sua versão de como saiu do Grêmio. Lembram de Cláudio Oderich, dirigente eleito do clube, convocando nos microfones uma reunião para o dia seguinte à eliminação na pré-Libertadores para discutir a demissão do maior ídolo do clube? Os casos de fim de relação trabalhista mal resolvida pululam lá e cá. Mesmo Roger Machado, que há bastante tempo se guia por uma ética inquebrantável de não começar a trabalhar em meio à temporada substituindo um colega, já deixou o Grêmio em 2016 depois de uma série de derrotas sob protesto do presidente Romildo Bolzan, que queria tê-lo mantido mesmo na crise. A escolha para substituí-lo não poderia ser mais feliz à época. Renato, que depois sairia como saiu, chegou para ser campeão da Copa do Brasil e da Libertadores.
Treinadores brasileiros já foram demitidos por telefone ou dentro do banheiro do aeroporto. Houve uma vez que Muricy Ramalho desconfiou que Cuca ligava para o presidente do São Paulo se oferecendo para voltar ao clube, ficou muito bravo. Ele, Muricy, tinha uma ética tão inegociável que preferiu não ir para a Seleção Brasileira porque a CBF queria que ele, o profissional, negociasse a saída com o Fluminense. Muricy entendeu que o processo estava torto, acreditava que a CBF deveria se entender com o clube. Ficou nas Laranjeiras e foi campeão.
Celso Roth viveu todo tipo de experiência e, a contragosto, segundo me contou num Botequim do Maurício que gravei com ele, viu colar na sua figura a imagem de socorrista, o cara que era chamado para desentortar um rumo. Funcionou em 2010, contratado para a semifinal da Libertadores e levou o Inter ao título. Foi um fracasso seis anos mais tarde, quando chegou com Fernando Carvalho e não conseguiu evitar o rebaixamento que já se desenhava. Foi demitido, aliás, antes do fim daquele Brasileirão por Fernando Carvalho, que assumira como vice de futebol depois da demissão de Falcão e levou Roth para a malsucedida missão Swat.
Haveria outros tantos episódios estranhos à sensatez para legendar a coluna, mas todos conduziriam ao ápice da quebra da ética da semana passada, quando Jorge Jesus disse informalmente sem pedir sigilo ao jornalista Renato Maurício Prado que gostaria de voltar ao Flamengo, mas só esperaria até o dia 20 deste mês. Afirmou também que Marcos Braz, o vice de futebol, foi a Portugal quando ele estava no Benfica, assistiu a um jogo no Estádio da Luz, criou uma confusão para Jesus no clube português e sequer fez uma proposta ao treinador, cuja multa à época era de 10 milhões de euros. A direção do Flamengo, logo após a fala desastrada do técnico idolatrado pelo torcedor rubro-negro, teve que vir a público dizer que não há chance de contratar Jorge Jesus neste momento.
Pense, no entanto, na posição de Paulo Souza, cujo trabalho não engrena, vendo seu compatriota criar esta lambança. Mas avalie também que o mesmo Paulo Souza deixou a seleção da Polônia, sob protestos da CBF deles, faltando duas rodadas para definir a presença polonesa na Copa do Qatar. Se você estiver lendo a coluna e perguntar a si mesmo ou a mim se há solução para que coisas assim não aconteçam, vou sugerir Não como resposta. Assim é, assim será. No ano passado, os dirigentes e a CBF acordaram que não poderia haver mais do que dois treinadores na mesma temporada. Os dirigentes de clube fizeram a proeza de sabotar o espírito da regulamentação colocando depois da vírgula que a limitação não valeria para casos de comum acordo. A quantidade de comuns acordos que se viram a seguir foi de envergonhar quem tivesse vergonha. Já no ano seguinte, a regra que virou pantomima sumiu. O faroeste ficou liberado sem cortina.
Então, leitor e leitora, se está bom para todo mundo, se dirigentes e treinadores, salvo as honrosas exceções, se sentem à vontade neste contexto, só resta seguir nesta toada. O dirigente continua tendo a bandeja de prata à disposição para colocar uma cabeça que não a sua, o treinador continua estipulando multa rescisória preventiva aos humores do mercado e o profissional que está no mercado sempre pode adotar o método Jorge Jesus para ver se pinta um emprego de ocasião. Oremos.