Você já deve ter ouvido mais de uma vez a comparação entre o camaleão e a pessoa que se adapta a qualquer ambiente ou situação. Às vezes, dito como elogio, outras tantas como crítica. Se a visão é da jarra meio cheia, trata-se de uma pessoa flexível. Caso meio vazia, refere-se a uma pessoa falsa. Em tempos de pandemia e necessidade de sobreviver a tantos desmandos, a tantas bizarrices e tudo mais que nos chega aos ouvidos todos os dias, ser camaleão é qualidade. Saber se adaptar ao que pintar e extrair o máximo prazer desta cena virou diamante. Enfim, vamos ao futebol.
Para vencer fora de casa o Manchester United pela Copa da Liga Inglesa quarta-feira passada, o Manchester City penou. Ganhava de 1x0 e era ameaçado pelo anfitrião. O espanhol Guardiola, o sujeito que reinventou o futebol ofensivo e encantador em 2008 com o Barcelona, autorizou-se uma medida extrema e inédita. Em seus tempos mais ousados, Pep jamais lançaria mão de um terceiro jogador de marcação em nome da preservação de um resultado. Pois bem, este dia chegou. O City já tinha Fernandinho e o alemão Gundogan, Guardiola tirou o atacante marroquino Mahrez e fez entrar o volante espanhol Rodri. Trancou a rua, parou de correr riscos e fez o segundo gol com Fernandinho, um dos seus marcadores. O treinador capitulou porque, afinal, a pandemia tornou tudo fora do lugar. Jogadores esgotados, outros doentes, outros ainda convalescentes dos efeitos da cura recente, o combo obrigou Guardiola a simplesmente se adaptar.
O português Abel Ferreira tem um dos mais caros e qualificados elencos da América do Sul. Enfrentando o River Plate na Argentina, terça-feira passada, o Palmeiras vivia dificuldades no início e estava na iminência de levar o gol. O técnico decidiu que precisava agir, mas não foi trocando peças. Com os mesmos jogadores, trouxe o lateral-direito Marcos Rocha para ser terceiro zagueiro e recuou Gabriel Menino para a ala-direita. Menino vem sendo convocado por Tite como lateral. O Palmeiras se realinhou e ganhou de 3x0. Vindo de um continente onde titularidades são discutíveis há mais tempo e a volatilidade tática está posta como irreversível, Abel Ferreira não se esquiva de arriscar por aqui. Outro dia, deu errado. Trouxe Gustavo Scarpa para a lateral-esquerda, deixou o uruguaio Viña no banco, não funcionou. Acontece.
Abel Braga está longe de ser um treinador contemporâneo no sentido de dedicar-se a leituras sobre futebol, usar tablet à beira do campo e outros "quetais". Poderia ser chamado de técnico raiz. No entanto, neste retorno corajoso que fez ao Inter na hora mais grave do clube no ano passado, ele veio disposto a se adaptar e fazer o que fosse preciso. Foi eliminado de duas competições, teve coronavírus, recuperou-se e encontrou, enfim, um desenho e uma escalação. Como um camaleão possível, Abel Braga tem feito o Inter jogar um futebol seguro. Longe de encantador, longe de sedutor. Seguro. No mundo ideal, seria ainda mais camaleônico e se desprenderia do falso dilema onde joga Thiago Galhardo ou Yuri Alberto porque disputam a mesma função. Podem jogar juntos. Mas, afinal, tudo tem limite. Abel excedeu os seus, está encontrando outros. Adaptou-se à necessidade e adaptou o Inter a um conceito muito diferente do que pretendia Eduardo Coudet.
Rogério Ceni, não. Seu trabalho está atrasadíssimo e impacta que seja assim. Eliminado da Libertadores, passou a ter semana inteira para trabalhar e instituir um conceito de jogo. Cadê que conseguiu? O seu Flamengo parece ter involuído. Não há repertório. Não existe adaptação a nada porque Ceni não precisaria se adaptar. Ele tem o melhor elenco da América Latina. Falta jogo coletivo no time que enfrenta o Ceará no Maracanã neste domingo. O líder do Brasileirão tem um treinador que demorou a se adaptar à urgência de revisar conceitos. Fernando Diniz formatava times de boas ideias e pouca defesa. Quando transigiu e colocou um guardião de zaga sem prescindir que fosse bom jogador, o time cresceu. Ao perder Luciano, lesionado, não conseguiu adaptar ninguém à função. Ao invés de ser o camaleão que o time está precisando ao enfrentar o Santos nesta rodada, Fernando Diniz perdeu o centro. Anda alterado, grita com o juiz, destrata seu jogador, se desequilibra. Tal instabilidade emocional poderá custar ao São Paulo o título que parecia encaminhado no Brasileirão.
Recentemente, contra este São Paulo, Renato Portaluppi se revelou camaleônico para ser bem-sucedido. Quem, dias antes, declarava que seu time jogava o futebol mais bonito do Brasil abriu mão de ter a bola, propor jogo e atacar mais do que defender. Foi preciso. O Grêmio havia apanhado de quatro do Santos, que lhe era inferior. A confiança desceu pelo ralo. Para retomá-la, o time machucado do Grêmio precisou se proteger e foi assim, reativo, que eliminou o São Paulo na Copa do Brasil. Contra o Palmeiras, na decisão da Copa do Brasil, o duelo tático promete. Os técnicos já mostraram que são capazes de mudar de pele. Aliás, ao ler sobre as características do camaleão para esta coluna, descobrir outros componentes interessantes que o ajudam a se adaptar tão perfeitamente a qualquer situação. Você sabia que o camaleão, além de trocar de pele, tem olhos que se movimentam independentes um do outro? E que o camaleão tem visão 360 graus, sabia?
Pois é, leitor e leitora, todos estamos precisando ser camaleônicos nos doidos tempos de pandemia que detonou em tantos de nós insensatez, intolerância, insensibilidade, irresponsabilidade, egoísmo, bizarrice e até maldade. Quem não partilha de tão nefastos defeitos precisam se adaptar para sobreviver, suportar e superar. O futebol não ficaria fora como universo paralelo. Também no futebol, os bem-sucedidos estão convencidos de que a era