O divórcio foi o resultado natural. A pergunta certa a ser feita é porque não me divorciei antes. Afinal, foi inimizade à primeira vista. Desde que me entendo por gente, nunca gostei da minha alma e nunca nos demos bem.
Sempre houve um constrangimento difuso entre nós, mas tolerávamo-nos. Estava certo de ter nascido com a alma errada. Suponho que era mútuo, que ela ansiava por um humano mais a seu jeito.
Vou poupá-los dos micos que ela me fez pagar, especialmente na infância e adolescência, quando não estava preparado para questionar seus conselhos. Ela sempre me pareceu ridícula, brega, supersticiosa - sua queda pela astrologia era insuportável. Sem falar da arrogância, sempre dando lições de moral. Não suportava que humanos não são anjos.
Divórcios internos levam a vantagem de não ter bens a repartir.
Pensávamos que a maturidade resolveria nossos problemas. Mas não aconteceu. Hoje, me envergonho de tê-la tratado tão mal. Bem, ela tampouco me tratava bem, mas um erro não justifica outro.
Nem lembro quem pediu a separação, era consenso que não nos faríamos feliz um ao outro. Divórcios internos levam a vantagem de não ter bens a repartir. No outro dia, cada um seguiu seu caminho.
A combinação era que se alguém a aceitasse eu correria o risco de ficar sem alma; de minha parte, se achasse uma alma melhor poderia adotá-la. Nos despedimos e ficamos anos sem notícias um do outro.
Não procurei outra alma. Sentia-me leve sem a encheção de saco das tolices como "comunhão com a totalidade cósmica", ou da "unidade suprema do além ego" e outros parangolés riponga.
No princípio gostei da minha vida desalmada. Atenção, não se deixe levar pela metáfora onde ficar sem alma é ser mau. Nada disso, exteriormente fiquei igual ou melhor, mas algo dentro de mim mancava.
Mais de uma década depois, um encontro casual. Foi uma alegria senti-la junto, afinal, fora uma vida em comum. Ela disse-me que não encontrou ninguém avulso que a interessasse, e que as pessoas instigantes já estavam almadas.
Anunciou que entendera seu destino. Seu Karma era me aguentar. Ficou feliz em saber que não arranjara outra alma e agora tinha filhos.
Sentia falta de ter alguém que realmente me conhecesse. Disse-lhe que sem música gospel e xalalá esotérico seria mais fácil nosso convívio, se ela me aceitasse de volta.
Ela fez as exigências de sempre, cedi sem pestanejar. É difícil viver sem uma parte de si que atazana com o contraditório.