* Sociólogo e jornalista
No domingo, eu havia terminado o livro Em nome dos pais, de Matheus Leitão (Intrínseca, 448 pág), um mergulho nos anos 70, época da prisão e tortura de seu pai, Marcelo Netto, e de sua mãe, Miriam Leitão e, por isso, estava envolvido pela narrativa que tentou juntar alguns dos cacos doloridos de uma história que o Brasil segue sem conhecer. De um lado, o livro nos mostra o "Camaleão", um dos algozes de Miriam, reconhecido por Inês Etienne Romeu, a única sobrevivente da "Casa da Morte" de Petrópolis, como um dos torturadores que a estupraram. De outro, nos apresenta uma jovem de 19 anos, grávida, presa por "atividade subversiva" (no caso, distribuir panfletos contra a ditadura), que é espancada e humilhada por 30 dias em um quartel, o que inclui a experiência de ser trancafiada nua, no escuro, uma noite inteira, com uma jiboia, instrumento de terror do coronel Paulo Malhães, torturador e assassino confesso, agraciado pelo Exército com a "Medalha do Pacificador", mesma honraria concedida ao também coronel, mas nunca assumido torturador e assassino, Carlos Alberto Brilhante Ustra. Foi essa Miriam menina que, diante de uma Corte Militar, pesando 38 quilos, disse: "Meritíssimo, eu fui torturada".
Postei em minhas redes a sugestão de leitura, como faço com frequência. Então, alguém escreveu que Miriam estaria, hoje, ao lado dos "golpistas". Argumentei, lembrando a importância de trabalhos dela, a começar pelo documentário sobre Rubens Paiva, uma das produções mais importantes já realizadas na TV sobre a ditadura. Nenhum efeito. Miriam seria uma "neoliberal" e o fato de eu a defender era o bastante para que o crítico não mais acompanhasse minha página. No comentário seguinte, uma mulher escreveu que também não poderia mais me seguir. O motivo: a indicação de um livro sobre "uma senhora que apoiou o comunismo". Assim, em alguns centímetros, inclinações à esquerda e à direita se encontravam na intolerância. Na terça-feira, Miriam relatou, em sua coluna no Globo, o incidente com um grupo de petistas em um voo.
A raiva de muitos petistas contra Miriam Leitão merece análise. A jornalista tem posições liberais em economia – o que contraria o PT que prefere intervir na economia. Na prática, como se sabe, para ajudar os grandes empresários. Miriam já classificou Reinaldo Azevedo e Constantino como "membros da direita hidrófoba" e tem repudiado Bolsonaro. O que importa, entretanto, é que a jornalista foi crítica da política econômica dos governos petistas, denunciando, inclusive, a farra do BNDES. Logo... só pode estar a serviço do capitalismo, da CIA ou do Tinhoso! Nessa tradição, se o farol do socialismo iluminar, digamos, uma foto de Lula com Maluf, há que denunciar a conspiração dos fotógrafos ou ensinar aos alienados que a dialética tem enigmas que só os guerreiros do povo brasileiro dominam. O estilo dispensa o pensamento, mas exige a santa ira do profeta. A verdade, que se deveria procurar a léguas desses mitos, vira caricatura e seria risível não fossem suas consequências.
O Brasil está impregnado de ódio, ignorância e desesperança. Não consigo imaginar combinação mais perigosa. As agressões verbais que Miriam segue sofrendo é outra nota da "paixão triste" que se alimenta do ressentimento. Enquanto isso, o país, emparedado pela rapinagem e pela ausência de projetos, vê monstros submersos há décadas iniciarem seu desfile na vizinhança. Os discursos de ódio montam palanques à direita e à esquerda no Brasil já faz tempo. Muitos petistas foram hostilizados, inclusive em momentos de aflição como na sala de espera de um hospital ou em um velório. A obtusidade não tem limites e mesmo filhos de petistas já foram estigmatizados. Há quem se divirta com o espetáculo. Experiências do tipo deveriam estimular a esquerda a valorizar a diferença de opiniões e os direitos humanos. Pelo contrário, entretanto, o que se vê, para além das declarações protocolares, é a subcultura do "escracho", a mesma prática odiosa da extrema-direita, com o agravante de que ela nunca é o resultado da imbecilidade avulsa. Por trás dos que ofendem Miriam há uma ideologia que imagina ter descoberto o sentido da história, o caminho, a verdade e a vida, e um partido incapaz de aprender e de fazer uma autocrítica sincera.
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