Ainda não se contou a história das crianças no Brasil. Quem o fizer haverá de selecionar entre atrocidades sem fim. Um dos símbolos dessa narrativa poderia ser a Roda dos Expostos, peculiar engrenagem para a entrega anônima de bebês a instituições de caridade. Até 1940, aliás, havia uma delas nos muros da Santa Casa, em Porto Alegre. Um cilindro com duas aberturas permitia que se acomodasse um bebê desde a calçada; a engenhoca era então girada e uma campainha acionada. Pouco se sabe sobre o destino dos seres entregues à Roda. Um deles foi Luciana de Abreu, depositada na Roda em 1847. Brilhante professora e uma feminista avant la lettre, Luciana de Abreu – que dá nome à rua no Moinhos de Vento e a uma escola municipal – morreu aos 33 anos, de tuberculose.
Não sabemos quantas são as crianças brasileiras que, ainda hoje, são vitimadas pelo abandono e pela violência. A rede de Conselhos Tutelares que o Brasil foi formando após a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) identifica, anualmente, milhares de casos de negligência, maus tratos e abusos sexuais contra crianças e adolescentes em todo o País. Os violadores são, como regra, pais e mães biológicos. Sabemos, entretanto, que os casos que chegam ao conhecimento da rede de proteção são apenas a ponta de um iceberg de maldades oferecido por adultos sem noção de parentagem, sem o menor preparo para o exercício das suas responsabilidades e dispostos a destruir qualquer possibilidade de vida saudável para suas crianças. O problema, assinale-se, não está localizado nos bolsões de miséria, nem é característica exclusiva de pessoas com baixa escolaridade. Há, também, muitos pais e mães com vocação ao abuso e à desgraça entre as classes médias e nos grupos mais privilegiados socialmente.
O que ocorre com as crianças que são vítimas do abandono e da violência? Quando casos do tipo são identificados, elas são encaminhadas para abrigos públicos municipais. A partir dessa medida, irá se avaliar as chances da criança retornar ao convívio dos pais biológicos, ser encaminhada aos cuidados de alguém da "família estendida" (avós, tios...) ou, se nada disso funcionar, ser disponibilizada para adoção. Crianças vitimadas, entretanto, dificilmente são adotadas. O perfil de adoção no Brasil, ao contrário do que ocorre em outros países, não é o de um gesto de amor em favor das crianças que necessitam de família. A demanda, como se sabe, é por bebês recém-nascidos, porque o que preside o gesto é a satisfação das necessidades dos próprios adotantes.
A vida em um abrigo é uma experiência de privação essencial para as crianças, por melhores que sejam os esforços dos cuidadores. Conheci um tanto dessa realidade quando inspecionei abrigos em vários estados brasileiros, em 2000, no projeto das Caravanas Nacionais de Direitos Humanos. Quem já visitou um abrigo sabe que as crianças disputam a chance de andar de mão com o visitante e pedem que as levem dali. Por isso, sempre que inspecionei manicômios, presídios ou instituições como a antiga Febem, meus sentimentos foram de indignação diante dos infernos que conheci; mas, ao sair dos abrigos, a sensação foi apenas a de uma avassaladora tristeza.
Escrevo sobre esse tema porque há um novo caminho se concretizando no Brasil, e ele se chama "famílias acolhedoras". Por essa abordagem, famílias são selecionadas e preparadas para que recebam crianças vitimadas, por um prazo que pode ser breve ou se estender por alguns anos. O município acompanha de perto com um corpo técnico e cobre as despesas com a criança, pagando, em regra, um salário mínimo mensal. Em Santo Ângelo, sob inspiração do juiz Luis Carlos Rosa, a ideia já é lei municipal e, em Porto Alegre, a vereadora Fernanda Melchionna (PSOL) apresentou projeto a respeito, o que poderá, em breve, inaugurar importante política pública. Eis um bom tema para se perguntar aos prefeitos eleitos e aos candidatos que disputam o segundo turno das eleições.
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