A sordidez política atual (em que até o presidente da República e seus íntimos estão apontados por corrupção) multiplica a saudade pelas figuras de ontem, em que honradez e coragem desaguavam na grandeza, como rios no mar.
Dom Paulo Evaristo Arns é o exemplo recente desses homens que, como Gandhi, parecem ter nascido para iluminar o planeta. Até sua morte teve luz – partiu 72 horas após o Dia Internacional dos Direitos Humanos, como homenagem na despedida. E agora desponta a coragem com que o cardeal arcebispo de São Paulo enfrentou a ditadura direitista, defendendo todos os perseguidos sem indagar credo ou ideologia.
Em 1972, o general Médici surpreendeu-se quando ele e o cardeal Aloysio Lorscheider, presidente da CNBB, ambos franciscanos, foram a Brasília protestar pelo fuzilamento de toda cúpula do proscrito Partido Comunista. "O ditador pensou que íamos agradecer pela chacina daqueles comunistas ateus...", contava com terna ironia.
Em 1975, desatou uma revolução teológica e política, ao celebrar na catedral paulistana um culto ecumênico – com o pastor presbiteriano Jaime Wright e o rabino Henry Sobel – em memória do jornalista Vladimir Herzog, judeu e comunista, assassinado no cárcere. O primeiro desafio público ao horror da ditadura iniciou, também, o diálogo inter-religioso.
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A preocupação com os pobres, os perseguidos e os aflitos marcou a vida desse frade culto e erudito, doutorado na Sorbonne, autor de 49 livros, magnífico escritor em uma dezena de idiomas, inclusive latim e grego. Seus antigos alunos lembram que ele fazia os seminaristas representar em grego as tragédias de Sófocles e Eurípedes.
– Na última vez que o vi no convento em que se recolheu, ele lia os sermões de São João Crisóstomo em grego –, recordou um deles, o teólogo Leonardo Boff.
Cultos e eruditos pululam pelo mundo. Em poucos, porém, a meta existencial é a bondade e o amor ao semelhante, como nele e na irmã Zilda, morta no terremoto do Haiti.
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Escrevo sobre dom Paulo quase aos prantos. Em 1977, quando militares uruguaios me sequestraram ao visitar Montevidéu (e, durante seis meses, fui "um desaparecido" no terror), ele levou ao papa Paulo VI uma carta da minha mãe pedindo a interferência do Vaticano. Guardo até hoje a resposta informando da interpelação feita ao governo uruguaio.
Anos depois, visitei o cardeal-arcebispo, que me recebeu como "colega jornalista". Ele se orgulhava do semanário 'O São Paulo', derradeira publicação na qual a ditadura suspendeu a censura. A miopia dominante julgava a publicação católica "ainda mais perigosa e comunista" do que o liberal 'Estadão', também censurado...
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Seu feito maior, ainda sob governo autoritário – a criação da Comissão Justiça e Paz – redundou no 'Brasil, Nunca Mais', em que ele, o anglicano Wright e o rabino Sobel coordenaram a pesquisa sobre os delitos da ditadura, a partir dos próprios tribunais militares. Depois, ele patrocina a pesquisa sobre os "desaparecidos" na ditadura argentina e identifica os primeiros 1.500 presos políticos lá assassinados.
Na redemocratização da Argentina, o relatório é a base do "Informe Sábato" que leva ao julgamento das Juntas Militares e condena o general Videla e o almirante Massera à prisão perpétua.
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No mesquinho simulacro atual (em que o suborno desponta como única meta política) quem se aproxima sequer da sombra da grandeza de dom Paulo?
Diz-se que "sempre houve" corrupção no Brasil. Eram, porém, casos a esmo e desorganizados. A Lava-Jato revelou o novo horror – a corrupção como engrenagem habitual, um instrumento de gestão, com PT, PMDB e PP organizados em quadrilha.
Lula da Silva, Renan, Eduardo Cunha e outros já estão na mira da Justiça. Há suspeitas, até, sobre um juiz do Supremo e a delação do diretor de subornos da Odebrecht mostra a face atroz: altos membros do governo e parlamentares do PMDB, PT, PP, DEM, PSDB (e etc) agiam como servos das grandes empresas. O depoimento é como brasa ardente nas mãos – queima e dá medo, não só tristeza: "Para fazer chegar meus pleitos a Michel Temer, eu me valia de Eliseu Padilha e Moreira Franco, que o representavam".
Ainda sem ouvir Marcelo Odebrecht, o medo cresce entre a náusea atual e a saudade do que já não há.
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