Fora de época, com pouco tempo entre os jogos para acomodá-la no inverno árabe e prejudicando o nível técnico, a 22ª Copa do Mundo entrará para a história como um erro monumental. Caríssima e com públicos superfaturados apesar dos espaços vazios nos estádios. Envolta em denúncias de que foi comprada na base dos propinodutos Fifa. Censura violenta às causas LGBTQIA+.
Uma Copa travada, com medo, sem que as pessoas pudessem se divertir em torno do futebol, com suspeitas de câmeras do Estado invadindo a privacidade nos hotéis e até celulares. Mas a bola rolou, e a Copa aponta caminhos. Funciona como um farol para os próximos quatro anos.
A primeira Copa no Oriente Médio teve o seu capítulo mágico. Não de um país da região. Nem mesmo do continente. Marrocos fica na África, e não na Ásia. Há, entre os países do norte – Egito, Argélia, Tunísia -, algum distanciamento com pitadas de preconceito. Houve um tempo no qual era comum uma designação que hoje, ainda bem, nos agride. A “África Branca” separava essas nações das outras.
O fato é que idioma e religião unem Marrocos e Mundo Árabe. A semifinal virou um duelo entre Oriente e Ocidente, para além do primeiro país africano numa semifinal. A maneira como os marroquinos lutaram espantou os franceses. Estavam possuídos, tomados de amor pelo país que os acolheu contra a xenofobia europeia e salpicando no bico da chuteira o sangue derramado dos antepassados. A mensagem que Marrocos deixou é: sim, é possível.
E teve os superacréscimos. O chefe da comissão de arbitragem da Fifa, Pierluigi Colina, avisou que a última cartada em defesa da bola rolando e contra o antijogo seria testada. Nada dos cinco minutinhos de praxe, mas até o dobro se preciso fosse.
O objetivo era educativo. Quem fingisse a morte para ser atendido, sobretudo no caso dos goleiros, pagaria caro. A Argentina, craque na catimba, quase ficou no caminho. Abriu 2 a 0 sobre a Holanda nas quartas e acionou o modo furar a bola e apatifar o jogo. O árbitro deu 10 minutos a mais, e o gol de empate que levou à prorrogação se deu justamente no 10º minuto. No Catar, apesar da gritaria inicial, deu certo. Na Europa das ligas profissionais, funcionará. E no Brasil da cartolagem, o país do jeitinho?
Não houve revolução tática nos estádios com ar condicionado glacial e arquitetura estonteante. É assim desde o futebol total do Carrossel Holandês de 1974, que virou a história das Copas do avesso. De lá para cá, as seleções adotam partes daquela tempestade que só não foi perfeita pela surpreendente derrota na final, contra a Alemanha, depois de sair na frente bem cedinho, puxa vida.
O perde-pressiona que faz atacantes agirem pelo desarme lá na frente nasceu aí. A Copa mostrou, isso sim, o império da força física. A Argentina só engatou quando montou um exército para liberar Messi. Antes disso, perdeu para a Arábia Saudita. A França, quando aperta, aciona Mbappé e sua velocidade de Usain Bolt. Cristiano Ronaldo sumiu no meio de jovens zagueiros gigantes rápidos.
Foi também a Copa das redes sociais. Não só no sentido do uso, selfie e stories acionados antes de viver a experiência do instante que não volta mais. No Catar, vi cenas que me remeteram a seitas fanáticas tipo Santo Daime, com o Deus celular apontado ao céu. Isso já havia em 2018. Só que nesse mundo, quatro anos são quatro séculos.
A mídia tradicional ainda monopoliza as transmissões, mas a Fifa fez testes abrindo direitos para influencers com dezenas de milhões de seguidores e fãs. Alguns trabalhavam nos estádios e entrevistas coletivas com equipes já maiores do que muitos órgãos de imprensa centenários. É um caminho sem volta, com menos jornalismo crítico e mais entretenimento. A Copa de 2026, a primeira em três países (EUA, Canadá e México), será deles.
Foi a Copa de um novo tricampeão. Ainda longe do Penta que nos distingue, mas é bom abrir o olho. O último tango de Messi. O reinado solitário de Mbappé, que dele recebe o bastão. O francês faz 24 anos nesta terça-feira. Terá 35, idade de Lionel, na Copa de 2034. Não se vê ninguém perto de ameaçar seu reinado de Luis XIV. O fiasco da Alemanha, pela segunda vez seguida eliminada na primeira fase. As teses de revolução para descobrir, ensinar e formar gerações campeãs em série dando espetáculo, que viscejaram após o 7 a 1, perderam força.
O fato é que a Copa do Catar, a despeito de seu legado no campo e de seus gatos tranquilos, foi uma Copa errada e artificial.
E o Brasil? Bem, o Brasil… Deixa para lá, com ou sem Neymar em 2026.