Você já deve ter ouvido, e não está errado quem abre essa vírgula, uma advertência a cada novo episódio de violência perpetrado por integrantes de torcidas organizadas Brasil afora. Os atores não são torcedores, e sim arruaceiros. Caso de polícia, portanto. Sim, de fato é injusto igualar vândalos com pessoas que vão ao estádio ou mesmo militam nas redes sociais dentro de parâmetros aceitáveis de convivência e crítica.
Vivemos numa democracia, embora muitos por aí façam pouco caso dela. Ditaduras ou flertes autoritário, em algum momento, se voltam contra o indivíduo. Que pode ser você, seja qual for a sua ideologia. Aí pode ser tarde para lembrar como era boa a democracia e seus defeitos. É preciso distinguir torcedores de criminosos, portanto, sem generalizar. Mas há uma armadilha perigosa nessa separação.
Quando abrimos esse aposto – eles não são torcedores –, pode-se passar a ideia de que o problema não é do futebol. Ali diante alguém acrescentará que a violência existe em toda a sociedade, reforçando o sentimento de ser algo estranho, de fora. Por essa linha de raciocínio, daqui a pouco o futebol é uma vítima do sistema.
Não é verdade. Ao contrário. O futebol não apenas dá guarida para esse tipo de comportamento beligerante, mas o alimenta, valoriza e estimula. Os corintianos ameaçando fisicamente jogadores no aeroporto é mera consequência natural, assim como a invasão do Orlando Scarpelli durante um treino, que resultou em cinco agredidos. A culpa por essa deformação é, sim, do futebol.
Volta e meia você vê no noticiário dirigentes abrindo o CT para torcedores cobrarem jogadores. Pode até resolver na hora, aliviando a tensão, mas no médio e longo prazos é sentença de morte. Não existe diálogo com quem não quer conversar. O ponto é a mensagem que esse tipo de "diálogo" transmite. Atitudes assim vão legitimando o terror.
O pior é que parte dos jogadores, alvos na derrota, reforçam essa lógica sem perceber. Vestem o boné da torcida quando são contratados. Encampam provocações nas redes sociais, com direito aquela curtida estratégica. Pequenas atitudes que vão criando o caldo.
É uma cultura, com raízes coronelistas na ditadura. "Onde a Arena vai mal, um time no Nacional", era um dos lemas do regime, que pedia para a CBD inchar o Brasileirão. O autoritarismo está na gênese do futebol brasileiro. E o viés autoritário sempre flerta com violência, preconceito, homofobia e racismo.
No jogo do PSG contra o Olympique, de Marselha, Neymar acusou Alvaro Gonzalez de chamá-lo de macaco. Agora surge uma suposta leitura labial na qual o brasileiro teria sido homofóbico, ao retrucar usando a expressão "maricón". Resultado: Neymar punido por agressão. Sobre racismo e homofobia, nada.
Que se punisse os dois por seus erros. A ofensa homofóbica, que corretamente tem de ser cada vez mais condenada, ainda é vista pelos jogadores como palavrão aleatório. É triste perceber isso, pois indica algo nefastamente enraizado. Não duvido que Neymar nem tenha se dado conta de que sua resposta também tenha sido uma ofensa grave. Isso se ele falou isso mesmo. Parece-me mais uma manobra diversionista para não punir o racismo.
A Fifa vinha bem ao propor campanhas e se posicionar, mas fraqueja na hora de ser antirrascista. Qual árbitro vai suspender uma partida com estádio lotado se a vítima for do time adversário? Imagine a pressão das organizadas, patrocinadores, dirigentes. O medo de sair da escala é maior.
A cultura do futebol, e é nessa cultura que os jogadores são formados, especialmente os brasileiros, inclusive Neymar, é preconceituosa, homofóbica e racista. O estádio ainda é visto como um coliseu romano, para entreter e exorcizar demônios. É uma lógica que se espalha. Como se vê, este ambiente violento em vários níveis vem sendo construído há decádas.
Reconhecer erros, como admitir que o futebol é culpado, e não vítima, é o primeiro passo.