Afora algumas insistências que já deveriam ter sido descartadas em nome do futuro, como William e Fernandinho, além de outros cujas chances recebidas devem estar na casa dos três dígitos sem nunca se firmarem, caso de Phillipe Coutinho, a pior fase da Seleção Brasileira nas mãos de Tite obriga a pensar além do resultado. E aí não tem nada a ver com técnico.
Pode ser ele, Renato, Jorge Jesus ou Guardiola: tanto faz. Tite pegou um time ameaçado de não ir à Rússia e o classificou em primeiro lugar nas Eliminatórias. Venceu a Copa América mesmo sem Neymar. Já obteve melhor rendimento com o material humano à disposição. É o que o credencia para seguir no cargo, inclusive. Mas é preciso sair do raso e mergulhar nas causas.
FORMAÇÃO – A derrota por 1 a 0 para a Argentina, irritante pela posse de bola improdutiva, exige reflexão. Não sobre substituir Tite, é claro. Seria amadorismo tirá-lo logo na primeira crise. Mas é fato: o rendimento nesses cinco amistosos sem vitória esteve muito abaixo. Depois da Copa América, o Brasil não se impôs diante de Colômbia, Peru e Argentina, inimigos de Eliminatórias. Preocupante.
Refiro-me a uma questão mais grave: a formação de talentos. Do meio para a frente, a Seleção vai se resolver até a Copa do Catar. Os exemplos estão aí, à mancheia. O Brasil abre o ano com David Neres, mas fechará com um muito melhor: Everton. Vinícius Júnior ia atropelar no Real Madrid, mas ele é que foi atropelado por Rodrygo. No ataque, a fila anda. Logo ali Neymar estará de volta. E do meio para trás?
De Casemiro para trás é um mundo terraplanista. Não há talento e lucidez. Se Danilo e Alex Sandro são os herdeiros de Cafu, Daniel Alves, Roberto Carlos e Marcelo, apenas para ficar no passado recente, pobre futuro. O melhor zagueiro de Tite, anos luz à frente de qualquer outro, jovem ou não, soma 35 anos. Chama-se Thiago Silva. Marquinhos, 25, seu parceiro no PSG e na Seleção, é bom jogador, mas não enche os olhos de ninguém. Quem mais?
Em outros tempos, uma lista com Éder Militão seria piada de programas humorísticos da noite, mas diante da aridez do solo restou chamar o jovem de 21 anos. Que pode evoluir, é claro. Nada é definitivo. Hoje, ele é reserva do Real Madrid.
Houve um tempo, nem tão distante, no qual reservas nem fardavam na Seleção Brasileira. Lúcio e Edmílson vestiam a camisa verde-amarela na condição de ídolos na Alemanha e na Espanha. Sem bons zagueiros e bons laterais, em um futebol que exige construção desde lá atrás e muita velocidade com acerto de passe pelos lados, como fazer time?
O CRIADOR – O pior é que as trevas da formação de defensores se estende ao setor de criação. Nos anos 1970, quase todos os grandes clubes brasileiros tinham um camisa 10 clássico e craque: Carpegiani, Zico, Ademir da Guia, Rivellino, Dinamite, Dirceu Lopes. Hoje, esse papel cada vez mais é suprido por volantes apoiadores e atacantes que recuam.
Ouvi, de um integrante da comissão técnica: “se houvesse um armador melhor do que Coutinho, ele seria chamado”. De fato não há, ao menos com mestrado ou doutorado na Europa, onde o nível é infinitamente superior, um ritmista afirmado.
Há jogadores que flanam aqui e lá mal tocariam na bola, mas Tite bem poderia tentar Everton Ribeiro, a estrela criativa do Flamengo mesmo sem ser o 10. Terá 33 anos na Copa do Catar. Repare: até os mais novos marcham para a veterania na posição.
Como se vê, há problemas graves na nossa formação de jogadores. E de quem é a culpa? Há muitos atores neste teatro, porém os clubes têm parcela grande. Sufocados pelas contas a pagar, talvez não haja dolo. Mas culpa, sim.
As categorias de base só querem saber de atacantes, de preferência extremas velozes e dribladores. O mercado paga rios de euros por eles. Uma venda por ano e está tudo resolvido, com salários em dia e até chance de contratar alguém.
Paga-se pouco por zagueiros e laterais. O que dá dinheiro é atacante e volante tipo Arthur. Quem é o articulador do Inter? D’Ale, 38 anos. E do Grêmio, desde Douglas? Luan, Jean Pyerre e Tardelli. Nenhum veio da base como meia articulador. Como improvisar, em nível de Seleção, zagueiros e laterais? O tempo está passando, e a renovação pós-Rússia é uma gangorra: uma ponta lá no alto, a outra quase perfurando o solo.