Em 1949, logo no começo do segundo tempo, o lendário Didi levou um carrinho violento de Ivan, zagueiro do América. Abriu-se um talho em seu tornozelo direito, por onde o sangue jorrou. Como não eram permitidas substituições, ele suportou as dores até o fim do jogo.
O rasgo infeccionou. Houve complicações. Didi perdeu alguns dentes e até as amígdalas, como decorrência da entrada de Ivan, o terrível. Da violência, a arte. Assim nasceu a Folha Seca, a mais incrível cobrança de falta do futebol brasileiro.
A fonte dessa história é bem confiável: o próprio Didi. Entrevistei-o em sua casa na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, em dezembro de 1996. Depois do carrinho assassino, toda vez que Didi batia na bola com o lado interno do pé direito, como de costume, sentia dores lancinantes. Por instinto, passou a usar o lado de fora do pé. “Foi aí que eu percebi”, disse Didi, estalando os dedos, bem à minha frente.
Ele calculava três passadas até se contorcer diante da bola, que precisava subir como se fosse parar só no morro da Mangueira. Subitamente, ela, a bola, despencava. Enganado pela primeira impressão, o goleiro relaxava e não conseguia reagir quando percebia o engano. Era tarde. Trajetória errante como uma folha de outono que se desprende do galho, resultado de um chute seco.
Eis a folha seca de Didi.
Há uma foto da época, de um jogo da Seleção contra o Peru, em 1957, que mostra a bola tocando o solo centímetros além da risca, depois de passar por cima da barreira, finalizando uma parábola impossível no ar. Foi essa cobrança de falta que classificou o Brasil para a Copa do Mundo de 1958.
Assim como foi uma cobrança de falta, claro que de menos luzes diante do inigualável Didi, que matou o Barcelona, em Guayaquil, classificando o Grêmio para a final da Libertadores antes mesmo do jogo de volta na Arena. O primeiro gol, de Luan, tonteou. Mas foi o segundo, de Edilson, que nocauteou os equatorianos. A já lendária defesa de Marcelo Grohe e o terceiro gol, novamente de Luan, emolduraram a atuação estilo obra de arte do Grêmio no Equador.
O cobrador de faltas parece até uma espécie em extinção no futebol brasileiro. Há poucos realmente bons, como no passado. No caso de Edilson, trata-se de uma raridade entre os raros, pelo estilo da batida, com o lado externo do pé e muita força. É algo que exige treino, por unir precisão e potência.
Ele já fez outros gols mais bonitos do que contra o Barcelona, tipo aquele pombo sem asas diante do Fluminense. Em Guayaquil, o goleiro Banguera ajudou um pouco. Mas quem foi o último mestre neste estilo? Nelinho, Roberto Carlos, Marcelinho? Com a palavra, Edilson:
— Sempre gostei do estilo da batida do Roberto Carlos. Tenho que dar moral ao Anderson Lima, meu parceiro. Ele pegava muito bem na bola. Outro cara que batia desse jeito que eu bato era o Branco. Treino sempre que é possível. A carga de trabalho é grande. A gente recebe orientações no intuito de dosar o número de batidas. Não sei te precisar quantas faltas bato por semana. Só não posso contar o segredo porque aí me complica (risos). Mas olha só: por ser uma cobrança que a gente entra de frente na bola, ela tem que passar pelo lado (da barreira). E sem bater em ninguém. Ao contrário das cobranças tradicionais, que encobrem a barreira.
Em toda a cobrança de falta, é preciso desafiar as leis da física. Arce e Luiz Carlos Goiano, no bi de 1995, eram mestres nessa arte. A bola tem de fazer uma curva capaz de vencer a parede humana e mais o goleiro. Que, nesse instante, está vigilante como só estaria no pênalti. Os goleiros de hoje têm mais envergadura para esticar o corpo e alcançar o ninho onde a coruja dorme, ponto de contato entre a trave e o travessão.
A malandragem dos passinhos à frente da barreira nunca é proibida. Está mais dura a vida do cobrador, portanto. Mais ainda de quem não bate com o o lado de dentro do pé. Por isso a arma de Edilson é tão rara. Se já colocou o Grêmio na final da Libertadores, vai que garante o tricampeonato.