Há três anos, perto de o Juventude subir para a Série C contra todos os prognósticos, dada a crise financeira no Alfredo Jaconi, escrevi que Lisca não era apenas um excêntrico capaz de tirar leite de pedra, mas um personagem do futebol gaúcho. Chamei-o de técnico prodígio. Era um quarentão veterano, algo raro no universo dos profissionais da prancheta. Alinhei meus motivos para destacá-lo dessa maneira, e eles não tinham só a ver com campo e bola.
Aos 20 anos, já militava nas casamatas de base. Começou no Inter. De família tradicional, Luiz Carlos Cirne Lima de Lorenzi saiu de casa cedo para encontrar guarida em ambiente oposto ao seu, ao lado de gente humilde e sem o privilégio da oportunidade. Ainda é assim no nosso futebol. A maioria dos meninos candidatos a craque só tem duas opções: fama ou morte nos descaminhos da exclusão. Nada indicava que Lisca prosperasse, mas deu-se exatamente o contrário. A adaptação ganhou ares de simbiose.
Leia mais:
Reunião na madrugada, bicho extra e troca de treinador: a última cartada do Inter para evitar a Série B
Torcedor Colorado ZH: Dia Um, Doideira Um
Lisca comanda seu primeiro treino no Inter sob olhar dos titulares
Lisca só não tinha recebido chance em clube grande por puro preconceito, a despeito dos elogios de dirigentes, empresários e jogadores quando falavam de seus conceitos e sessões de treinamento. Seu estilo, de fato, não é nada convencional. Não é todo dia que um treinador escala o alambrado tipo centroavante do Boca nos velhos tempos da Bombonera para vibrar com a torcida, como fez Lisca ao eliminar o Grêmio do Gauchão 2013 nos pênaltis.
Depois vieram as canções no milagre do Ceará, quando assumiu com 92% de queda e, ao final, manteve o “vovô” do Nordeste na Série B. Ganhou R$ 1 milhão pela façanha. O fato é que sempre havia uma vírgula. Nos bastidores, Lisca era bom, acima da média, até de gênio já ouvi o chamarem. Mas, e aí está a vírgula, é louco. Sanguíneo demais, exagerado demais, sem a medida do que dizer e do que não dizer. Uma bomba-relógio. Serei mais sintético: faltava-lhe postura exigida para um respeitável treinador.
O Brasil tem muito desses dogmas repetidos que viram verdade absoluta, mesmo que sobrem exemplos em contrário debaixo do nosso nariz. José Mourinho é uma metralhadora giratória. Louis Van Gaal jogou-se ao chão para representar simulação de um jogador. O delegado Antônio Lopes deu voz de prisão ao árbitro, sóbrio como um fã do Motorhead. Jair Picerini já voou no cangote de um repórter após pergunta considerada inadequada. Felipão atirou a bola em um jogador do Vasco que ia cobrar lateral em sua primeira passagem pelo Palmeiras, em 1998, contra o Vasco. Bielsa é “loco”, e todo mundo acha bacana.
O Tiago Cirqueira, um dos meus chefes (cada vez os tenho mais: não sei se isso é bom exatamente, mas suponho que sim), mostrou-me na RBS TV uma crônica de 1989, extraída do livro Orgias, de Luis Fernando Verissimo. Chama-se A Hora do Louco. Trata de um técnico que, para onde ia, levava um centroavante aipim que nunca jogava por não ter nada a ver com o seu estilo científico de compreender o futebol. Os jogadores não entendiam aquilo.
O técnico nada tinha a ver com o estilo do Búfalo Bril, “que combinava físico de búfalo e cabeleira de palha de aço”. Apelidaram-no de Louco. Diziam que “era mantido pelo técnico (mas claro que isso podia ser boato) num quarto escuro, ouvindo heavy metal e alimentando-se de parafusos”. No primeiro jogo complicado do time, o técnico manteve a estratégia conforme seus princípios frios, lógicos e matemáticos. Com a proximidade do apito final, abriu mão de algumas orientações mais complexas e simplificou outras. O tempo foi passando e nada de o placar sair do 0 a 0. Quando o cronômetro bateu nos 42 minutos, ele suspirou, olhou para o banco e disse:
– Preparem o Louco.
Lisca está longe de ser o Búfalo Bril, até porque é um nerd de tanto que estuda e se atualiza. Mas a direção, quando demite Celso Roth faltando três rodadas para o rebaixamento, lembra o técnico da crônica do Verissimo, a 42 minutos. Chamou o Louco. No caso, o Doido. Contratar Lisca não deixa de ser uma santa loucura neste ambiente tão conservador dos grandes clubes, ainda que a chance tenha nascido do desespero, e não da convicção.
A vantagem do Inter, se é que existe vantagem em um momento tão medonho, é que Lisca é talentoso. Ele está diante de uma chance única de se eternizar na história colorada, caso opere o milagre. Quem sabe não é mesmo de um tanto de loucura o que o Inter precisa, após errar tanto com um treinador convencional como Celso Roth? No mínimo, já prepara o terreno para a Série B em 2017, com alguém com farta experiência em singrar o país para jogar de Norte a Sul.
Acompanhe o Inter através do Colorado ZH. Baixe o aplicativo:
*ZHESPORTES