A minha afilhada tem dois anos de idade. Ela é loirinha como um girassol, magrinha como uma cabrita, graciosa como uma filhota de tigresa, serelepe como um urso panda. Ela se chama Martina. Nesta semana, a Martina, pela primeira vez, tomou banho de chuva. Vi a foto. Ela corria de pés descalços (ela adora correr de pés descalços) e ria e ria.
Eu, quando pequeno, também gostava de tomar banho de chuva. No fim das tardes quentes, quando desabava o temporal, nós zuníamos para a rua e gritávamos de alegria ao receber na cabeça, nos ombros e nas costas as pancadas daqueles pingos grossos, cada um do tamanho de uma bala Azedinha, enquanto nossas mães sorriam da janela com a condescendência própria das mães.
Gostei de ter tomado aquela chuvarada. Foi como se ela me lavasse das vicissitudes e me renovasse.
Mais tarde, já guri crescido, estava vagabundeando com meus amigos no IAPI, olhávamos para cima e víamos que o céu começava a se tornar lilás na linha em que a índia Obirici eleva seus braços de bronze em direção ao firmamento. Eram as chuvas de verão que vinham. Alguém propunha:
– Vamos jogar bola?
Vamos. É claro que vamos.
Pena que bola de futebol, naquele tempo, era coisa cara. A melhor bola do bairro, a do Zé Fernandes, de couro vermelho, oficial, número 5, essa ele não ia emprestar para dia de chuva. Então, nós arrumávamos alguma já gasta, com os gomos botando a língua para fora, e íamos para o campinho. Não era jogo, jogo: era pelada. Goleira de tijolo ou de chinelo de dedo. Quem pedisse furo entrava. Ninguém esperava, nem se um time ficasse com um jogador a mais. Daqui a pouco se batiam nove contra oito, nove contra 10, a maior confusão. Não importava. O que queríamos era dar carrinho nas poças d’água. O jogo terminava assim que terminava a chuva. Voltávamos para casa embarrados dos cabelos às solas dos tênis, para escândalo das nossas mães, que berravam, no momento em que a porta de casa se abria:
– Vai jogar essa roupa no tanque e já pro banho, guri!
Agora, adulto, no verão em que me mudei para os Estados Unidos, cinco anos atrás, havia previsão de que o rabo de um furacão passaria pelas imediações aqui de Boston. Era o feriado de 4 de julho – verão americano, portanto. Tinha acabado de me mudar para o apartamento em que moro, ainda estava sem móveis, só com alguns apetrechos de sobrevivência. Depois de um dia quente e de muito trabalho, saí para jantar. Fui sozinho, a Marcinha e o Bernardo ainda não tinham vindo do Brasil. Fui a um pequeno restaurante a umas oito quadras de distância, jantei e, na hora em que saí, achei estranho: as ruas estavam vazias. Vi que, lá longe, passava um carro de polícia que fazia algum comunicado pelo alto-falante. Não cheguei a compreender o que o policial dizia, mas deduzi que fosse algo a ver com o tal furacão.
Bem. Era mesmo.
Não que o furacão, em pessoa (ou em vento), tenha se apresentado, mas seus efeitos, sim. Porque, de repente, senti a aragem de uma tempestade em formação e, em seguida, o primeiro pingo caiu bem na minha testa. Pensei: vou apressar o passo. Não deu tempo de colocar a decisão em prática: os céus se abriram e foi como se uma caixa-d’água tivesse sido despejada na minha cabeça. Fiquei completamente encharcado em dois segundos. A chuva era tão espessa, que eu não conseguia ver nada a um braço de distância. Quando cheguei ao meu prédio, uma vizinha que estava na portaria caiu na gargalhada ao me ver. Dei de ombros, subi para o apartamento e me sequei, cantarolando lá fora está chovendo, mas assim mesmo eu vou correndo... Gostei de ter tomado aquela chuvarada. Foi como se ela me lavasse das vicissitudes e me renovasse. Considerei um bom presságio para a nova vida que se iniciava para mim e para minha família.
Quando estiver no Brasil, talvez olhe para o céu no final de alguma tarde de calor e veja que lá vem vindo uma chuva de verão. Então, talvez entre em uma velha bermuda e pegue a Martina pela mão e vá para a rua, para tomar banho de chuva. Talvez chame também o meu filho, Bernardo, ou outras crianças que estiverem por perto. E vamos dançar nas poças d’água e vamos correr de pés descalços e vamos sentir a chuva no rosto. E vamos rir e rir.