Algum detrator há de me chamar de cínico, mas juro que escrevo isso com o coração puro, isento de qualquer sarcasmo: para que nossos estudantes aproveitem o tempo livre das férias, dedico-lhes esta cesta de frutos colhidos no fértil pomar de nossa língua.
1) enticar − Um leitor de Lajes, Santa Catarina, dono de um estilo telegráfico, quer saber tudo sobre esse verbo: "Existe? De onde veio? Qual a diferença de inticar? Não é gíria? Posso usar sem medo? Obrigado. Paulino". Sim, caro Paulino, existe, sim, e normalmente com o sentido de "puxar briga, implicar com alguém", mas até hoje não se sabe muito bem de onde veio. A hipótese de que teria vindo do Latim, defendida por Antenor Nascentes, não se sustenta, pois como este termo só apareceu na nossa língua na segunda metade do séc 19, seria de perguntar onde teria se escondido ao longo de todos esses séculos que nos separam de Roma.
Podes usar sim, mas evita a grafia *inticar, que não passa de um confusão entre pronúncia e escrita. Lembro que 90% dos brasileiros pronunciam o E inicial, antes de M ou N, como /i/: se não acreditas, pede a um amigo ou parente que diga em voz alta a série enxada, empréstimo, embutir, enxoval e encarnado, por exemplo, e logo vais concordar comigo. Escrever *inticar, portanto, seria o mesmo equívoco que escrever *imbutir só porque é assim que se costuma dizer.
Nomes ilustres já consagram este termo em letra impressa: Domingos Olímpio, Aluísio de Azevedo (em O Cortiço), Mário de Andrade e, para deixar para o fim a cereja do sorvete, ninguém menos que o grande Machado. Em uma de suas crônicas de 1898, lamentando o grande número de mortes ocorridas na Turquia, num choque entre cristãos e muçulmanos, ironiza: "O provável é que os coveiros tenham separado os corpos, e será piedade, pois não sabemos se, ainda no caminho do outro mundo, o Corão não irá enticar com o Evangelho".
2) Groenlândia − Maria Cícera P., de Aracruz, Espírito Santo, precisa saber qual é o nome correto da maior ilha do mundo: é Groenlândia ou Groelândia? Já encontrei dos dois jeitos na internet e não sei qual eu devo usar".
Prezada Maria, compreendo muito bem a tua hesitação. O nome de batismo dessa ilha − Grønland, "terra verde" − foi facilmente transposto no Inglês para Greenland, que manteve a mesma construção e significado do original. No nosso idioma, no entanto, houve apenas uma adaptação fonética, aproximativa, que originou três formas variantes: no Brasil, groelândia e groenlândia: em Portugal, gronelândia. Ora, descartada esta última, que parece muito exótica ao meu e ao teu ouvido, ficamos entre as duas primeiras. Para fazer uma boa escolha, seria bom ouvir a opinião de nossos lexicógrafos, mas infelizmente nossos dicionários − ao contrário dos ingleses, que são mais enciclopédicos − não registram nomes próprios. Usando porém um pouco de técnica e de manha, podemos descobrir o que eles pensam sobre isso: Houaiss define groenlandês como "aquele que é natural ou habitante da Groenlândia"; acho que deves seguir o exemplo dele.
3) leiaute − M. G., artista gráfica, pergunta como pode substituir o estrangeirismo layout, bastante utilizado em sua profissão, concluindo sua mensagem com um enfático "AMO A LÍNGUA PORTUGUESA!!!" − assim mesmo, todo em versais e tão cheio de exclamações que me faz supor que seja mais do que uma declaração de amor pelo idioma. Estaria aqui a nossa artista expressando sua ojeriza a formas estrangeiras, vindas de fora, que viriam ameaçar a pureza da língua portuguesa? Se for esse o problema, gostaria de tranquilizá-la: a língua cuida de si mesma; ela deixa entrar livremente os vocábulos imigrantes e os absorve em seu sistema, num invejável mecanismo de inclusão linguística. Knockout vira nocaute, blackout vira blecaute, layout vira leiaute − todos ganham cidadania brasileira e passam a fazer parte do nosso léxico.
4) de repente − A leitora Sônia V. quer porque quer saber, em definitivo, quando deve usar de repente ou derrepente. "Estou cansada de "veja bens"; por favor, professor, não fique em cima do muro; seja objetivo". Está bem, Sônia. É muito simples: usa de repente quando quiseres escrever certo, e derrepente quando sentires uma vontade irresistível de errar. Não dá para esquecer.