Na coluna de hoje tenho o prazer de receber a ilustre visita do professor José Hildebrando Dacanal, amigo de quase meio século, companheiro de armas na luta contra o obscurantismo e a barbárie. Como não podia deixar de ser, sua consulta chegou por carta manuscrita, como manda o antigo protocolo epistolar:
“Acompanhamos sempre sua coluna em ZH. Dias atrás lembrei-me que há alguns anos lhe perguntei se afanar não poderia derivar do Grego faino, fainem (“fazer aparecer, mostrar”), antecedido pelo a privativo; e se de pitocos não viria pitoco, pois ambos têm o mesmo significado de “pequeno, humilde, baixo” (afinal, afirma-se que os gregos chegaram até os atuais Portugal e Açores). O senhor disse que não, que não poderia ser. Como etimologia não é o meu ramo, pergunto: afinal, o que é necessário para aceitar ou provar a procedência de uma palavra? Só documentos? Semelhança não conta? Ou estou tão velho que não lembro muito bem de qual foi sua resposta?”.
Em primeiro lugar, caro Dacanal, deixa de lado esse “senhor”, já que combatemos na mesma trincheira e nos tuteamos há tanto tempo. Depois, sossega, que a tua memória não te traiu: lembro que falamos de passagem sobre o assunto e na hora eu não tive tempo de explicar minha resposta, o que já vou fazer logo adiante. Finalmente, os gregos chegaram, sim, a regiões de Portugal – tanto ao território real, concreto, onde deixaram marcas de sua passagem, quanto ao território imaginário, já que há autores que atribuem a Ulisses a fundação lendária de Olissipona, nossa atual Lisboa.
Agora, vamos ao teu problema: como numa investigação de paternidade, é claro que o quesito aparência é importantíssimo para justificar uma investigação mais detalhada – mas ele não basta por si só, como bem deixas entender na formulação da tua pergunta. Qualquer pessoa que domine mais de um idioma – e tu, como se sabe, conheces mais que muitos – vai encontrar palavras que são praticamente idênticas em duas línguas diferentes, sem que nada sugira ter havido a transmissão de uma para a outra: nosso polvo nada tem a ver com o polvo do Espanhol (“pó”), nosso grave nada tem a ver com o grave do Inglês (“túmulo”), nem o pain do Inglês (“dor”) tem alguma relação com o pain do Francês (“pão”).
Além da semelhança entre o possível pai e o possível filho, é necessário que tenha havido contato entre os presumidos genitores. As combinações de fonemas produzidos pelo homem são numerosíssimas, mas assim mesmo limitadas, e não seria difícil encontrar um vocábulo do tupi idêntico a um vocábulo do antigo persa; essa coincidência, porém, seria irrelevante, já que jamais houve contato físico ou cultural entre essas duas línguas. Na tua sugestão, este quesito também deu positivo: afinal, o Grego andou visitando a Península Ibérica, seja pessoalmente, seja por intermédio do Latim.
Afanar com o sentido de “roubar, subtrair do alheio” é gíria moderna, de meados do século 20, e não estava presente na origem do vocábulo.
Ora, parece que a última condição decisiva, a do sentido, também está presente: se fainem quer dizer “mostrar, fazer aparecer”, o acréscimo do prefixo a- indicaria o significado contrário, “fazer desaparecer” – e assim teria nascido o nosso afanar. Então? O que está faltando para comprovar o parentesco? O simples fato de que se conhece o verdadeiro pai deste verbo, que é o substantivo afã. No século 18, Bluteau já registrava: “entre nós afanar é trabalhar muito, matar-se para fazer ou para conseguir alguma cousa” – e hoje, três séculos depois, Houaiss o define como “trabalhar ativamente, com afã; azafamar-se”. Para teu regalo, um exemplo do Padre Vieira, advertindo os fiéis que supervalorizam os bens materiais: “Homenzinhos miseráveis, não vedes que vos hão de meter debaixo de uma sepultura, e que de tudo quanto andais afanando e adquirindo não haveis de lograr mais que sete pés de terra?”.
Afanar com o sentido de “roubar, subtrair do alheio” é gíria moderna, de meados do século 20, e não estava presente na origem do vocábulo. Da mesma forma, pitoco não tem registro algum ao longo da história da língua, ao menos até o séc. 19. O fato de todos os dicionários portugueses classificarem-no com os rótulos de brasileirismo e informal sugere que ele nasceu mesmo aqui no nosso quintal, brincando junto com cotoco. Se tivesse origem grega, não poderia ter passado todos esses séculos escondido, para vir à tona apenas há algumas décadas. Era isso. Um grande abraço e lembranças à família.