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Por Marcelo Dutra da Silva
Ecólogo e professor da Furg
A importância do Brasil para o mundo sempre esteve associada às riquezas naturais do país, e isso não mudou em 500 anos. Nem mesmo nossa cultura de pós-colonizados, que se manteve igual na forma como nos relacionamos com a natureza; como produzimos e supervalorizamos a exportação de bens primários (commodities), que mais tarde serão manufaturados pela indústria internacional, gerando emprego, receita e renda na cadeia de valor de outros países; ou como olhamos para o mundo, partindo do princípio de que tudo o que vem de fora é melhor, no mais puro sentimento “vira-lata”. Uma visão que levou séculos para ser construída, que tem muito a ver com a nossa origem e com as elites se perpetuando na posição de dominantes, o que, de alguma forma, nos condicionou ao papel de um país fornecedor de recursos, pouco industrializado e consumista voraz, limitado pela renda e sem muitas preocupações com qualidade, com impacto e práticas responsáveis.
O Brasil, 500 anos depois, tem uma das mais belas e completas legislações ambientais do mundo, um sistema robusto de fiscalização e controle e uma política nacional que distribui responsabilidades entre União, Estados e municípios. Um gigante territorial, que figura entre as 10 maiores economias do planeta, forjado na extração de bens minerais (petróleo e minério de ferro), na produção agropecuária (carne, grãos e derivados) e que, diferentemente da maioria dos países, possui uma matriz energética baseada em fontes renováveis de energia – pouco mais de 47%, de acordo com a Empresa de Pesquisa Energética (EPA), ligada ao Ministério de Minas e Energia, sendo esses 57% distribuídos em hidráulica (12,5%), derivados de cana-de-açúcar (15,4%), lenha e carvão vegetal (9%), eólica e solar (3,5%) e outras fontes renováveis (7%). Se considerada a matriz elétrica, a participação de fontes renováveis chega a superar os 80% no país: hidráulica (61,9%), bagaço de cana (4,7%), eólica (11,8%), solar (4,4%) e outras (0,8%).
De outra parte, há décadas o Brasil vem tentando se posicionar no cenário internacional como o país de maior potencial para o desenvolvimento da economia verde e sustentável, primeiro como o país da biodiversidade, o mais engajado em conservação, e, mais recentemente, como líder global do mercado de carbono. Assinamos acordos, promovemos políticas públicas, direcionamos recursos, mas... O nosso fardo colonialista não nos permite avançar para muito longe, não com a velocidade desejada e onde é mais necessário. Quando falamos em carbono e gases equivalentes do efeito estufa, por exemplo, a agenda de combate às emissões responsáveis pelo aquecimento global, no Brasil, é muito diferente, se comparada à de outros países. Por aqui, de acordo com o Observatório do Clima, Relatório 2023, do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (Seeg), não pesam as emissões relacionadas a matriz elétrica; pesam mais as emissões da matriz energética (18%) e ainda mais as emissões associadas às mudanças de uso da terra (49%), agropecuária (25%), resíduos (4%) e processos industriais (4%) (valores estimados entre 2020 e 2021).
Portanto, não é difícil entender por que o debate sobre as mudanças climáticas e a descarbonização da economia, no país, se coloca de forma tão travada, carregado de “poréns” e defesas inflamadas, na tentativa de manter o status quo do sonhado progresso, que mais tem cara de crescimento econômico do que o desejável desenvolvimento da economia, que é quando o sucesso da produção e da produtividade vêm acompanhados de bem-estar social e proteção do meio ambiente. E este é o ponto. Não deveríamos encampar a exploração de novos poços de petróleo se o local alvo compreende um espaço sensível ao óleo, de reconhecida importância ambiental e vulnerável a acidentes (que só podem ser evitados de uma forma: não submetendo ao risco); não deveríamos retroceder na legislação, buscando alternativas jurídicas para empreender em terras de origem indígena, disputadas há gerações; não deveríamos avançar nem mais um centímetro na direção de novas fronteiras agrícolas, devastando florestas, campos, serrados e outros que compõem os nossos biomas; deveríamos, sim, reduzir minimamente o uso de veneno em lavouras, a contaminação da biota, do solo, da água e das pessoas. É urgente um esforço nacional de adaptação das nossas cidades, sobretudo as mais expostas, na extensão do litoral brasileiro.
As mudanças climáticas são reais, vêm se reproduzindo com muito mais intensidade, e não estamos preparados. Falta-nos o básico. Não temos instrumentos de planejamento e gestão atualizados e alinhados entre os entes federativos. O Plano Nacional de Mudanças do Clima não tem sido suficiente para cadenciar ações estaduais e municipais no sentido de orientar recursos e prioridades. Na prática, é um instrumento muito voltado à redução das emissões (o que é importantíssimo), mas pouco dedicado a definir estratégias estruturantes de prevenção e adaptação frente aos eventos extremos que temos enfrentado, particularmente no sul do país.
Que 2024 seja um ano diferente, marcado por iniciativas corporativas e de maior atenção da administração pública às questões de responsabilidade socioambientais. Um ano bom, produtivo e sustentável.