Especialistas entrevistados por GZH são unânimes ao apontar o grande motivo para as queimadas que atingiram o Rio Grande do Sul, com destaque para o mês de janeiro: a intensa estiagem atravessada pelo Rio Grande do Sul, que reduz chuvas e deixa solo e vegetação secos, transformando-os em combustível para fogo, para além de arruinar colheitas.
Diferentemente das queimadas na Floresta Amazônica, onde muitas vezes os incêndios começam de forma criminosa, as chamas no Rio Grande do Sul normalmente iniciam por acidente, dizem autoridades: bitucas de cigarro atiradas ao chão, lixo queimado, fios desencapados na estrada ou objetos metálicos e de vidro jogados no solo que geram foco de luz e combustão.
— Há três processos de desastres naturais que assolam o Rio Grande do Sul: inundações, vendavais e estiagem. Mas este período de estiagem tem sido cruel. O material orgânico fica suscetível a inicio de incêndio por qualquer fator. Atendemos a 2.091 ocorrências de 1º a 20 de janeiro — afirma o subcomandante-geral do Corpo de Bombeiros Militar, coronel Otávio Polita Filho.
Para piorar, o Rio Grande do Sul está no auge do verão, quando os dias são mais longos e há mais tempo de luz solar. Portanto, a atmosfera fica mais tempo aquecida, o que seca o solo e evapora a umidade das plantas, tornando a vegetação mais propícia para queimadas. Os poucos dias de chuva não foram o suficiente – nos temporais, a grande quantidade de água não é retida, mas escorre do solo, o que torna a vegetação seca novamente dias depois.
Mas por que tanta estiagem?
A perspectiva de estiagem já era antevista por especialistas quando se confirmou, no ano passado, o aparecimento de um conhecido fenômeno: o La Niña. Em linhas gerais, é o esfriamento das águas do Oceano Pacífico, na altura do litoral do Peru, que modifica a circulação de ventos e a pressão atmosférica no planeta.
A consequência disso para o Rio Grande do Sul, assim como para Uruguai, Argentina e Paraguai, é uma menor formação de chuva, o que favorece a estiagem, explica a meteorologista Josélia Pegorim, da empresa Climatempo. Ela cita que a Argentina registrou aumento de 1.008% nas queimadas em janeiro.
— Um dos efeitos do La Niña é que as frentes frias chegam, mas passam com muita rapidez pelo Sul do Brasil e se afastam. O que fica é um ar seco, e esse ar seco reduz a chance de chuva — diz a meteorologista.
Mas não é apenas o La Niña que torna o Rio Grande do Sul seco: um bloqueio atmosférico de 20 dias na América do Sul em janeiro impediu a entrada de frentes frias no Estado – tornando as temperaturas ainda mais altas e o ar, menos úmido.
— Esse bloqueio atmosférico fez com que um sistema de alta pressão ficasse parado sobre o Rio Grande do Sul e o Centro-Norte da Argentina, dificultando muito a formação de nuvens e a ocorrência de chuva. Você tem a ocorrência de pouca chuva e não tem ar fresco para normalizar a temperatura — acrescenta a meteorologista.
Para além de fenômenos meteorológicos passageiros, a mudança no clima, gerada pelo aquecimento global, intensifica a estiagem e torna as queimadas mais propícias, algo que deve se repetir nos próximos anos, explica o climatologista Francisco Aquino, professor da UFRGS e vice-diretor do Centro Polar e Climático.
Ele destaca que a região da Bacia do Rio do Prata é propícia para eventos severos, como muito frio, muito calor, estiagem ou muita chuva. Mas, com o aquecimento global e a elevação da temperatura dos oceanos, os extremos se tornam ainda mais intensos e frequentes.
— Eventos extremos sempre ocorreram, mas, quando você tem uma atmosfera mais quente, porque o planeta está mais quente, você os potencializa. O clima do planeta mudou: as últimas duas décadas foram quando anomalias extremas começaram a crescer rapidamente. Pode ser onda de calor ou de frio intensa, seca, nevasca ou tempestades. Com a mudança climática, esses eventos ficaram mais frequentes, chegam a recordes extremos e ficam mais duradouros. O aquecimento global intensifica o La Niña, e o La Niña intensifica a falta de precipitação — diz Aquino.
Por que o Pampa é o mais atingido?
A Fronteira Oeste é dominada pelo Pampa, que está seco e quebradiço devido à estiagem, o que o transforma em uma "palha" natural. Quando começa um foco de fogo, o incêndio é alimentado pelo característico vento forte da região.
— Há também uma densidade demográfica menor: são grandes propriedades com grandes extensões de terra ocupadas por uma vegetação nativa de gramíneas, que se tornam vassouras secas pela longa estiagem. Tivemos vários dias com temperaturas acima dos 40ºC. Aí ,o fogo se alastra com facilidade — explica o engenheiro florestal Igor Poletto, professor de Proteção Florestal da Universidade Federal do Pampa (Unipampa).
O sítio de Poletto em São Gabriel, inclusive, quase foi tomado pelas chamas nesta semana. A situação descreve a realidade vivida por centenas de proprietários de terra:
— O fogo começou na periferia da cidade e avançou de propriedade em propriedade, porque ele não para na cerca, queimou mata nativa e de eucalipto. O sítio dos vizinhos queimou praticamente todo. Quando chegou próximo de casa, liguei para os Bombeiros, mas eles estavam em outra ocorrência. Nos preparamos com bomba d’água. Quando esteve a 10 metros da casa, uma chuva milagrosa chegou e apagou o fogo — conta Poletto.
Responsabilização
Os incêndios registrados ao longo de janeiro foram concentrados no Pampa, bioma que é pouco preservado e que tem apenas 3% da área destinada à preservação permanente. Os campos afetados deveriam ser recuperados, conforme a legislação ambiental. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) não retornou ao pedido de entrevista da reportagem.
O governo do Estado afirma que os incêndios ocorrem, em sua maioria, por acidente, e não por ação criminosa, mas reconhece que é difícil identificar a origem do fogo sem testemunhas e em meio a um cenário que favorece o fogo.
— Estamos interpretando como efeitos naturais relacionados à estiagem. Identificamos que os proprietários têm preocupação com suas culturas. O efeito de queimadas é muito difícil de a gente caracterizar o crime, principalmente nesses momentos de seca. Normalmente isso vem de denúncias. Tivemos fogo na região de Protásio Alves, que teve uma mancha de queimada de quase 70 hectares, e estamos investigando se é intencional ou não. Na região de Alegrete, teve um impacto bastante severo em áreas de campo nativo, próximo à área de proteção ambiental de Ibirapuitã — diz Diogo Pereira, diretor de Biodiversidade da Sema.
O advogado especializado em Direito Ambiental e professor na Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos) Delton Carvalho destaca que a supressão da vegetação pode ser responsabilizada na esfera Cível pelo arrendatário ou pelo proprietário da terra. Além disso, se a fiscalização ambiental é omissa, a administração pública poderá ser responsabilizada.
— Caso um raio caia sobre uma propriedade e haja incêndio, com consequente degradação ambiental, o proprietário deverá recuperar essa área. Veja que é bastante intensa a responsabilização civil ambiental no país — disse.
Carvalho acrescenta que quanto maior a participação da parte na degradação, tanto maior são as chances de responsabilização para a recuperação da vegetação nativa degradada. Em geral, o Ministério Público é instigado por denúncias ou toma a iniciativa para a abertura de expedientes para investigar ocorrências do tipo.
O diretor de Biodiversidade da Secretaria Estadual de Meio Ambiente destaca que o Palácio Piratini está pensando nas dificuldades impostas pelo aquecimento global a longo prazo. Pereira cita a Política Estadual de Mudanças Climáticas, desenhada pelo governador Eduardo Leite (PSDB). Na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, em novembro, Leite assumiu o compromisso de neutralizar as emissões de carbono no Rio Grande do Sul em 50% até 2030 e em neutralizar em 100% até 2050.
— Quando dizemos que vamos neutralizar as emissões pela metade até 2030, queremos ampliar a cobertura de vegetação nativa no estado. O próprio rebanho bovino representa em torno de 40% da emissão de gases estufa do Rio Grande do Sul. Estamos desenvolvendo ações para nos aproximar e instruir pecuaristas — diz Pereira.
Dicas para evitar incêndios florestais
Conforme o Corpo de Bombeiros, algumas medidas podem evitar incêndios em vegetação. Ações como não jogar cigarros e lixo nas estradas contribuem para evitar pontos de fogo que podem alastrar-se rapidamente nos campos à beira das rodovias. Para acampamentos e práticas agrícolas, a corporação destaca algumas dicas preventivas:
- Sempre capinar em volta e tirar a vegetação do local onde for fazer uma fogueira ou colocar velas;
- Ao abandonar uma fogueira, apagar com água ou terra;
- Manter fósforos e isqueiros fora do alcance das crianças;
- Fazer aceiros – desbaste da vegetação – ao redor de casas, currais, celeiros, armazéns, galpões, etc.;
- Optar, sempre que possível, por estratégias alternativas ao uso do fogo, como roçada manual ou por máquinas e plantio direto.