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No bairro onde reside a menina de nove anos sequestrada e vítima de abuso nesta semana, em Tramandaí, no Litoral Norte, alguns vizinhos desconfiavam do comportamento de Marco Antônio Bocker Jacob, 61 anos. O homem foi morto durante linchamento, após o caso gerar reação violenta da comunidade. A criança foi resgatada por policiais de dentro de um alçapão no chão, com tampa de concreto, e relatou ter sofrido abuso.
Comportamentos do dono da loja de conveniências geraram indignação da vizinha Eliane Freitas, 56 anos. A mulher estranhava o fato de o homem criar oportunidades para ficar sozinho com crianças dentro do estabelecimento.
— Era uma tragédia anunciada na minha concepção. Gritei com ele muitas vezes por ele botar a criança ali dentro, a criança demorar, a criança sair com doce — relatou nesta semana.
Jacob já havia tentado sequestrar uma adolescente de 17 anos, no bairro Rubem Berta, em Porto Alegre, e cumpriu pena por isso. A vizinhança desconhecia seu histórico, e nem todos desconfiaram do comportamento dele. Para alguns moradores, os atos passaram despercebidos.
Perita médica legista psiquiatra do Departamento Médico Legal do Instituto-Geral de Perícias (IGP) e integrante do Departamento de Psiquiatria Forense da Associação de Psiquiatria do RS, Angelita Rios, com atuação no Centro de Referência ao Atendimento Infanto-Juvenil na Capital, explica que nem sempre é possível identificar um potencial abusador. Em muitos casos, os atos passam despercebidos e se prolongam por anos, até a vítima pedir ajuda.
— Não existe um comportamento específico que atribua grau de suspeição elevada. São pessoas que estão na sociedade, muitas vezes prestando serviços ou até mesmo responsáveis por aquelas crianças. Um elemento para estar atento é quando aquela criança surge com presentes inusitados, por exemplo — afirma.
Agressores sexuais de crianças e adolescentes costumam encontrar formas de manter o delito em segredo, e repetir a prática, muitas vezes. Por isso, presentes, doces e ameaças — até mesmo dizendo que fará algo contra os familiares da vítima — são frequentes. No caso de Tramandaí, o agressor teria usado um picolé e uma bola para atrair a menina e trancá-la dentro do alçapão.
É importante que a criança se sinta segura, tenha confiança e acolhimento de quem está cuidando, e possa falar. É preciso estar muito atento para ambiente do segredo. O agressor sexual infantil costuma trabalhar com o segredo. É a aliança que ele forma com a criança.
ANGELITA RIOS
Perita médica legista psiquiatra
— O cuidador familiar tem que deixar claro para a criança que pode contar qualquer segredo. Trazer qualquer informação. Isso quebra essa corrente do silêncio, quando a criança sabe que vai ser acolhida — orienta a perita.
"Procuram ficar a sós com a vítima", explica delegado
Diretor da Divisão Especial da Criança e do Adolescente (Deca) em Porto Alegre, o delegado da Polícia Civil Raul Vier também afirma que, em muitos casos, abusadores podem passar despercebidos.
— É um tipo de situação que permeia toda a sociedade, todas as camadas sociais e econômicas. Já atendemos casos em comunidades pobres e também nos bairros mais nobres. É difícil traçar um perfil único. Os abusadores podem ter as mais variadas características — afirma.
No entanto, o delegado aponta alguns comportamentos que podem servir de alerta, como alguém que busca estar próxima das crianças e, especialmente, isolar-se, encontrando oportunidades de permanecer sozinho. Vier explica que abusadores geralmente tentam estabelecer uma relação de confiança com a criança ou adolescente e seus responsáveis.
— Procuram oportunidades para ficar a sós com a vítima, oferecendo presentes, favores ou criando situações que dificultem a presença de outros adultos. Alguns abusadores se envolvem em atividades que possibilitam o contato direto com crianças e adolescentes, criando oportunidades para praticarem o abuso — detalha Vier.
Comportamentos de alerta
Sinais que podem ser manifestados por abusadores:
- Aproximação excessiva e busca por isolamento com a criança
- Excesso de interesse e contato físico inapropriado
- Emprego de manipulação e ameaça
- Acesso frequente a crianças e adolescentes
- Uso da internet para aproximação por meio de redes sociais
Mudanças nas crianças
A alteração de comportamento por parte das crianças é um fator que deve gerar alerta em pais e responsáveis. Esse tipo de sinal comportamental pode indicar algum tipo de violência sexual ou mesmo algum outro problema pelo qual a criança esteja passando.
— Um sintoma não quer dizer necessariamente um abuso sexual, mas acende um alerta, como fugas familiares, comportamento rebelde, atraso escolar, choro, hipersensibilidade. A mudança de comportamento da criança precisa ser sempre olhada e investigada — alerta a perita médica legista psiquiatra, Angelita Rios.
Possíveis sinais:
- Agressividade
- Baixo desempenho escolar
- Tristeza profunda
- Comportamentos sexualizados
- Perda de apetite ou compulsão alimentar
- Insônia, pesadelos frequentes ou querer dormir com a luz acesa
- Reação ao toque, como ao ser abraçado, por exemplo e repúdio a alguma pessoa, como um familiar.
- Há ainda outros sinais físicos, que também podem ser percebidos:
- Hematomas no corpo da criança (especialmente nas pernas e barriga)
- Dor, inchaço, sangramento ou mesmo infecção na área genital
- Dor na barriga (pode ser um sintoma emocional) e dores no baixo-ventre.
Como agir
Responsáveis
- Oriente a criança sobre seu corpo e sobre toques indevidos
- Não deixe a criança sozinha ou com adultos que não fazem parte do círculo próximo (mesmo com familiares, é preciso estar atento)
- Cultive um ambiente de diálogo aberto, em que qualquer assunto pode ser tratado
- Esteja atento às redes sociais, que também podem ser locais de contato de pedófilos
- Procure a polícia se tiver conhecimento de qualquer situação de abuso
- Fique atento a reações incomuns da criança
- Não tenha confiança cega em ninguém
Escola
- Mantenha relação estreita com órgãos policiais e peça orientação sempre que necessário
- Na dúvida, registre ocorrência em uma delegacia
- Crie uma cultura de participação dos alunos, em que eles tenham voz
- A equipe da escola deve valor a palavra da vítima e ter interesse em apurar os fatos
O que fazer ao identificar sinais de abuso?
- Ouça e acredite na palavra da criança
- Proteja e afaste a vítima do possível agressor
Denuncie imediatamente:
- Acione a Brigada Militar pelo 190
- Registre ocorrência na Polícia Civil
- Disque 100: liguei para o canal do governo federal para denúncias anônimas
Fonte: Divisão Especial da Criança e do Adolescente (DECA)
“Toda a sociedade deve estar atenta”
Comandante-geral da Brigada Militar, o Cláudio dos Santos Feoli reforça a necessidade de as crianças e adolescentes serem protegidos pelos pais, responsáveis e por toda a comunidade, inclusive escolar.
— Não apenas os órgãos de segurança, mas toda a sociedade deve estar atenta. A rede de atendimento e proteção prevê um trabalho integrado dos órgãos de segurança, Conselho Tutelar, espaços educacionais, sistema de saúde e assistência social, entre outros. Por estarem em situação de desenvolvimento físico e psicológico, muitas vezes as crianças não têm discernimento para reconhecer que podem estar prestes a ser vítimas de uma violência — afirma.
Em relação à Brigada Militar, segundo Feoli, a orientação é que qualquer pessoa que suspeite ou identifique que uma criança ou adolescente esteja sendo vítima de abuso ou exploração sexual, ligue imediatamente ao 190 e informe a situação.
Mesmo quando seja mera desconfiança, é importante estar atento às mudanças comportamentais da criança. Quando não encontra o amparo na família, normalmente ela dá sinais de que algo não está bem no ambiente escolar
CLÁUDIO DOS SANTOS FEOLI
Comandante-geral da BM
Uma das ações desenvolvidas pela BM nas escolas é o Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd), considerada também uma forma de aproximação entre os policiais e o ambiente escolar.
— Não raras vezes, durante o trabalho desenvolvido, as crianças e adolescentes conseguem encontrar no policial, a confiança para denunciar algum abuso ou violência que esteja sendo vítima. Nesse ambiente, os policiais integrados à comunidade escolar, conseguem orientar e buscar o mecanismo de proteção mais adequado para cada caso que venha à tona — diz o comandante.