
Em agosto do ano passado, ao sair de casa, no início da manhã, um morador da Vila Mapa, na Lomba do Pinheiro, zona leste de Porto Alegre, deparou com um corpo no meio da rua. Mais tarde, a investigação identificou que o morto, de 23 anos, havia sido torturado, amarrado, arrastado num veículo e executado por integrantes de uma facção rival. Jovens representaram 44% das vítimas de homicídio na Capital em 2024. Eles estão entre os principais alvos do crime organizado.
Zero Hora mapeou, a partir da análise de dados da Secretaria da Segurança Pública (SSP) do Estado, o perfil das pessoas assassinadas em Porto Alegre. Jovens, do sexo masculino e moradores da periferia estão entre os que mais morrem de forma violenta. Em 2024, foram registrados 164 homicídios no município — destes, 72 mortos tinham idade entre 15 e 29 anos. A taxa de assassinatos na capital gaúcha mais do que dobra quando olhamos somente essa faixa etária: de 12 para 26,8 mortos a cada cem mil habitantes.
— O Rio Grande do Sul segue o padrão do Brasil, até um pouco abaixo. No país, metade dos homicídios é de jovens, de 15 a 29 anos. Existe um padrão até internacional de que, quando se trata de violência, sobretudo letal, o jovem é o grande protagonista, não apenas como perpetrador, mas como vítima — analisa o economista Daniel Cerqueira, membro do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), autor de um estudo que analisou o custo das mortes no Brasil e da chamada "juventude perdida".
O crime organizado é apontado pelas forças de segurança como o principal responsável pelo assassinato de jovens na Capital. Em 2024, Porto Alegre teve redução dos homicídios e também das mortes pelas facções criminosas (veja abaixo), mas o tráfico de drogas continua como fator preponderante para as mortes violentas quando se tratam de jovens, conforme a Polícia Civil.
Dentro dos grupos criminosos, jovens desempenham diferentes funções, desde comércio nos pontos de tráfico, até segurança do grupo, ou mesmo gerência. São eles que, muitas vezes, lideram os chamados “bondes”, que são os ataques às áreas dos inimigos. O conflito entre as facções, seja por disputa de território ou para eliminar lideranças rivais, pesa na balança dos assassinatos de jovens.
— As razões para um jovem ingressar no crime organizado são variadas, mas existe essa falsa sensação de ascensão. Recebem armas, algum dinheiro e drogas. Na realidade, esse jovem vai acabar preso ou morto na maior parte das vezes. O destino é esse. Os jovens estão matando e sendo mortos pelas facções — alerta o diretor do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), delegado Mario Souza.
Redução da população jovem
Outro aspecto considerado preocupante neste cenário é que esses assassinatos ocorrem em paralelo a um movimento de transição demográfica. A população jovem gaúcha, assim como de outros Estados do Sul e do Sudeste, vem encolhendo. Em Porto Alegre, o Censo 2022 identificou 268.258 habitantes entre 15 e 29 anos. No mapeamento anterior, em 2010, eram 83.418 a mais – 351.676.
— No plano econômico, vamos ter menos pessoas na idade ativa de trabalho e mais pessoas aposentadas. É preciso aumentar a produtividade da população ativa. E estamos desperdiçando essa produtividade, esses jovens que estão sendo excluídos da economia de mercado. Essa não opção focada na infância e na juventude é um pecado econômico e social para a nação brasileira — alerta Cerqueira.
Cientista social e historiador, Charles Kieling também demonstra preocupação com esse fator. O especialista, que estuda o crime organizado há três décadas, alerta que os jovens ficam na linha de frente, quando os conflitos entre os grupos se acirram. Isso faz com que eles se tornem aqueles que mais matam e mais morrem.
Até uns quatro anos atrás, mais ou menos, existia certa pacificação entre algumas facções. Mas isso implodiu e, quando isso acontece, os jovens vão para a linha de frente. Eles muitas vezes têm mais habilidade no volante, para a fuga, e no uso de armamentos de guerra, que as facções utilizam.
CHARLES KIELING
Cientista social e historiador
Outro ponto que chama a atenção no perfil das vítimas é que a maioria é do sexo masculino, ainda que a população feminina seja maior na Capital. Entre jovens, segundo o Censo de 2022, eram 135.783 mulheres e 132.475 homens. As mulheres, segundo a polícia, estão presentes nas organizações criminosas, mas desempenhando outras funções, como logística e finanças. Via de regra, não participam dos confrontos armados.
— A presença é maciçamente dos homens. São os que mais matam e mais morrem. As lideranças do crime organizado também são exercidas pelos homens — afirma o diretor do DHPP.
Em relação à cor, a maioria das vítimas de homicídio na Capital é branca. No entanto, quando se recorta somente os jovens, esse percentual se equilibra com o de pardos, negros e amarelos.
Dados de RS e Brasil
Segundo os dados do Atlas da Violência do ano passado, houve queda nas mortes de jovens no Rio Grande do Sul no período de 2012 a 2022 (o ano mais recente analisado pelo estudo). Em 2022, foram 832 vítimas nessa faixa, conforme o relatório. No ano de 2017, por exemplo, no ápice da criminalidade tinham sido o dobro: 1.639.
No país, em 2022, dos 46.409 homicídios registrados, segundo o Atlas da Violência de 2024, 49,2% vitimaram jovens entre 15 e 29 anos. Foram 22.864 jovens mortos, média de 62 assassinados por dia. Considerando a série histórica dos últimos 11 anos (2012-2022), foram 321.466 jovens vítimas da violência letal no Brasil.
Envolvimento com o crime
Embora haja exceções — vítimas jovens sem relação com o crime organizado —, na maior parte das vezes, segundo a polícia, o alvo do homicídio tinha algum envolvimento prévio com grupos criminosos. A violência da família, da comunidade e das instituições no entorno desse jovem colabora para que ele ingresse no caminho da criminalidade. O início se dá na primeira infância, quando muitas vezes, as crianças estão expostas inclusive à violência dentro de casa.
Estamos falando de um país que mata o jovem duas vezes. Antes da morte física desse jovem, já houve uma morte simbólica. Que morte simbólica é essa? É de um garoto criado num ambiente de violência, sem condições sadias de desenvolvimento. A violência já nasce dentro de casa.
DANIEL CERQUEIRA
Coordenador do Atlas da Violência
— Esse menino entra na escola e não vai conseguir aprender. Vai ser expulso ou termina se evadindo e se juntando a outros da comunidade. Entra no sistema socioeducativo e mais à frente no sistema prisional, e a gente gastando horrores e achando que vai resolver tudo com prisão. Quando a ciência diz que a forma mais barata de evitar crimes é, exatamente, tratar da primeira infância — detalha Cerqueira.
— É preciso melhorar o poder aquisitivo das famílias mais pobres de Porto Alegre. Esses jovens acabaram enveredando para o crime porque enxergam uma oportunidade de melhorar a privação econômica. O Estado precisa em certa medida suprir essa questão. Não há um mapeamento, levantamento do poder público com relação a esse jovem — complementa Kieling.
Queda nas mortes por facções
Em 2024, Porto Alegre teve redução de 38% nos homicídios — de 262 em 2023 para 164 no ano passado. Boa parte dessa queda foi puxada pela diminuição dos assassinatos envolvendo o crime organizado, apontado como o principal responsável por executar jovens.
As mortes passionais (outras motivações que não o crime organizado) mantiveram um nível similar. São crimes mais difíceis de serem combatidos, por envolverem questões pessoais. São mortes entre amigos, vizinhos, inimigos. Mas no crime organizado o número de mortes está reduzindo.
MARIO SOUZA
Diretor do DHPP
Entre as medidas adotadas para a queda dos homicídios no Estado está o RS Seguro, lançado há seis anos. O programa do governo, que tem como base o monitoramento constante e mapeamento dos crimes, elencou os municípios com maior número de delitos violentos, entre eles a Capital. Para esses locais, foram direcionadas ações, realizadas de forma integrada pelas forças de segurança.
Há cerca de dois anos, após constatar que, mesmo com a redução das mortes, o crime organizado ainda era responsável por cerca de 80% das execuções na Capital, o Departamento de Homicídios da Polícia Civil, com apoio da Brigada Militar e Polícia Penal, implementou uma nova medida com foco em tentar combater esse tipo de crime. Em 2024, as mortes pelo crime organizado caíram para 62% na Capital.
— Foi criado um protocolo de sete medidas que é acionado sempre que o crime organizado comete um homicídio. A ordem é não aceitar nenhum homicídio, e combater com rigor. A facção sabe que, se matar, vai sofrer as consequências. Quem mais está envolvido na facção, matando e morrendo, é o jovem. Então, as pessoas mais beneficiadas pela atual forma de enfrentamento aos homicídios do crime organizado são justamente os jovens — analisa Souza.
Em resumo, a medida prevê uma sequência de ações, adotadas em escala. Estão previstas práticas integradas, entre as quais a mais severa é o isolamento dos líderes que ordenarem as execuções, tanto em penitenciárias dentro do Estado, como em unidades federais. A técnica foi criada por David Kennedy, professor de Criminologia da Universidade de Nova York. Há 25 anos, o criminologista desenvolveu com colegas a Operação Cessar Fogo, em Boston, que levou à queda dos homicídios por lá.
— Essa ferramenta, chamada de dissuasão focada, realizada de forma integrada pela Polícia Civil, Brigada Militar e Polícia Penal, com a sensibilidade do MP e do Judiciário, somada ao trabalho de todas as polícias, auxiliou que 91 pessoas deixassem de morrer no ano passado em Porto Alegre. Se pensarmos que 44% das vítimas são jovens, ao menos 40 jovens deixaram de morrer. Foram vidas salvas de um ano para o outro — afirma o delegado.
Como afastar jovens do crime
- Combater a evasão com uma escola mais inclusiva
- Ter programas voltados à primeira infância
- Controlar a violência doméstica e familiar
- Criar espaços e envolver jovens em lazer e cultura
- Investir em educação socioemocional
- Gerar oportunidades e empregos para a juventude
- Reinserir menores infratores e combater a reincidência