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Nos últimos dois meses, os brinquedos da Praça Castelo Branco, em Tramandaí, no Litoral Norte, estavam praticamente abandonados. Vizinhos da loja de conveniências onde uma menina de nove anos foi abusada sexualmente e mantida em cativeiro por 18 horas desconfiavam do comportamento do proprietário do estabelecimento, Marco Antônio Bocker Jacob, 61 anos.
Moradores do bairro Parque dos Presidentes contam que ele costumava ficar sentado em frente à loja, de frente para a praça, usando óculos escuros. Os cabelos bem penteados contrastavam com o cigarro apoiado entre os dedos de uma mão e o copo de cerveja na outra.
— Se passava uma mãe com uma criança, ele não olhava para a mãe, ele olhava para a criança. Ele ficava cuidando as crianças. Ele ficava com a cadeira virada para a pracinha o tempo todo. Nossas crianças abandonaram a pracinha — conta a vizinha Eliane Freitas, 56 anos.
Segundo vizinhos, Jacob havia se mudado para o endereço, em frente ao quadrilátero onde fica a pracinha, havia cerca de dois anos. Ele mesmo teria construído o prédio de alvenaria, com ladrilhos marrons na fachada, onde o crime aconteceu. Na lateral da loja, o terreno se estende em um longo corredor que termina em uma construção que seria o local onde o homem vivia. Os fundos são protegidos por um muro alto.
Para alguns vizinhos, ele contou que esteve preso e usou tornozeleira eletrônica porque teria matado uma pessoa em defesa da família. Segundo o Tribunal de Justiça do RS, Jacob teve uma condenação por três crimes: violação de domicílio, sequestro e cárcere privado e lesão corporal.
Jacob foi condenado por agredir uma adolescente de 17 anos em 2020, em Porto Alegre, onde vivia. Na época do crime, ele roubou as chaves e invadiu a casa de uma família, onde trabalhava como pedreiro. Na sequência, ele agrediu a adolescente e tentou imobilizá-la. Ele foi contido por vizinhos.
Conforme o delegado Alexandre Souza, responsável pela investigação do crime contra a menina, na ocorrência que o havia levado à prisão, Jacob teria carregado a vítima em um carrinho de mão coberta por um lençol.
— Só que ela acordou e conseguiu se desvencilhar, conseguiu fugir. Ele foi preso por isso e ficou três anos (cumprindo pena). Foi solto em 2023 — afirma Souza.
Ele também já havia sido indiciado por outros crimes, como tráfico de drogas, furto e crueldade contra animais. Ao todo, Jacob foi preso e solto em três oportunidades diferentes.
Até a noite de quarta-feira (26), nenhum familiar do homem havia se apresentado à polícia. Conforme os moradores, ele tem um filho adulto e um neto que moravam no bairro, mas se mudaram há algum tempo.
Vizinha desconfiava do homem
Moradora do bairro há 22 anos, nos últimos cinco, Eliane Freitas vive na Rua São Marcos, a poucos metros de onde a menina foi encontrada. A criança estava dentro de um fosso subterrâneo obstruído com caixas de cerveja. Conforme a polícia, a vítima foi atraída por Jacob para dentro da loja com a promessa de ganhar um picolé. A vizinha relata que já havia presenciado o homem oferecendo doces a crianças, que permaneciam por longos períodos dentro do estabelecimento a sós com ele.
— Eu entrei ali (na loja) uma vez para pegar um (botijão de) gás e outra vez para pegar um refrigerante, porque uma criança estava demorando muito. Era uma tragédia anunciada na minha concepção, como mãe, como família, como vizinha. Eu gritei com ele muitas vezes por ele botar a criança ali dentro, a criança demorar, a criança sair com doce — diz Eliane.
Segundo a moradora, em uma das ocasiões, uma menina entrou e ficou a sós com o homem por um tempo. Ela diz que a criança saiu do local arrumando a blusa. Eliane afirma que chamou a Brigada Militar, mas como não havia mais crianças no interior da loja quando ela fez a chamada, não foi possível registrar o fato.
Em outra ocasião, o homem teria chamado a sua neta pequena quando ela passou pela loja. A vizinha conta que teve uma discussão com o homem e proibiu a neta de se aproximar dele.
— Eu tinha essa minha situação com ele e ele nunca se defendeu, ele nunca tentou explicar para mim, "a senhora está errada", "eu sou uma pessoa do bem", 'jamais eu mexerei com ela". Ele nunca tentou, nunca — pontua.
Buscas pela menina
A procura pela criança causou comoção em Tramandaí. A família usou um carro de som para chamar pela menina e fez publicações em redes sociais. Incomodada com o calor, a criança saiu de casa para brincar na pracinha, que fica a poucos metros de onde ela mora, no fim da tarde de terça-feira (25). Por volta das 19h, a Brigada Militar recebeu o chamado da família relatando o desaparecimento dela e iniciaram-se as buscas.
A polícia passou a noite e a madrugada fazendo varreduras pelo bairro. Diversas imagens de câmeras de segurança foram verificadas. Vizinho do local, Silvio Fonseca, 54 anos, que mora no bairro há 10 anos, foi chamado no portão de casa pela Polícia Civil durante a madrugada. Eles pediam pelas imagens de sua câmera de segurança.
— Não pude ajudar porque não conseguimos recuperar as imagens — lembra o vizinho.
Foi justamente uma câmera de monitoramento de outra vizinha que registrou o momento em que a menina teria acessado a loja que se tornou o seu cativeiro. Segundo relatos de moradores, a proprietária da câmera é uma gestante que passou a madrugada verificando horas de registros para tentar identificar o paradeiro da menina, até encontrar o momento em que ela entrou no estabelecimento e não saiu mais.
Música alta e comportamento suspeito
Entre a noite de terça e a manhã de quarta, o volume elevado da música tradicionalista que ecoava do interior da loja de Jacob chamou a atenção dos vizinhos. Os moradores dizem que, habitualmente, ele diminuía o volume quando chegava algum cliente. Naquele período, contudo, ele o manteve elevado. O som alto servia para abafar os gritos da menina, que, no entanto, foram ouvidos pelos policiais militares que estiveram no local na manhã de quarta.
Uma das vizinhas relatou que foi até a loja na terça-feira à noite e observou que o homem estaria com um olho inchado e com um comportamento atípico. Questionado pela mulher, ele teria respondido que tinha brigado, mas não contou com quem.
Homem acompanhou as buscas
Karen Josiane, 36 anos, também vive nas proximidades da loja. Ela conta que pouco antes das 23h de terça, a polícia e os familiares da menina estiveram em frente à loja do homem e ele teria acompanhado a movimentação sem demonstrar preocupação. Outra vizinha diz que ele, inclusive, conversou com as pessoas que faziam as buscas.
Entre 7h30min e 7h45min de quarta, o homem foi visto novamente sentado em frente à loja enquanto ocorriam as buscas. Karen comenta que Jacob não costumava deixar o carro fora da garagem, mas que na manhã de quarta, ele o deixou em frente à loja.
— O carro dele nunca ficava ali. Só quando ele ia sair para algum lugar, como mercado ou outra coisa. Mas nunca esteve aqui. Nunca. É desesperador saber que tu mora do lado de uma pessoa assim — comenta.
O carro do suspeito foi completamente depredado após o resgate da menina.
Atendimento
Moradora há mais de 20 anos do Parque dos Presidentes, Patrícia de Lima, 35 anos, também é vizinha da loja. Ela conta que o filho dela é colega de aula da menina. Ambos estudam no quarto ano. Segundo o menino, ela é muito obediente e educada.
A criança foi levada para Porto Alegre para receber atendimento especializado no Centro de Referência no Atendimento Infantojuvenil de Porto Alegre (Crai), que trata crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.
Gritos salvaram a vítima
O coronel Arthur Marques de Barcelos, comandante do Comando Regional de Polícia Ostensiva (CRPO) Litoral, comenta que Jacob não disse em nenhum momento que havia alguém dentro da loja com ele, pois os policiais estavam apenas fazendo uma entrevista. Contudo, ao escutarem os pedidos de socorro da menina, eles iniciaram uma varredura no local.
Segundo o comandante, havia dois PMs fardados no momento das buscas e outros cinco agentes da inteligência da Brigada, que atuam à paisana. O suspeito permaneceu junto dos policiais enquanto eles faziam as buscas.
Um vídeo registrou o momento em que os policiais percorrem um labirinto de corredores e caixas de bebidas nos fundos do estabelecimento, enquanto a menina pede por ajuda. A própria vítima diz que o homem abusou dela. Os gritos seguem até que os policiais localizam o alçapão com tampa de concreto oculto sob caixas de cerveja e resgatam a criança.
Linchamento
Enquanto os policiais socorriam a criança, uma multidão com cerca de 50 pessoas, conforme a BM, invadiu o local e agrediu Marco Antônio Bocker Jacob até a morte. O homem foi atendido pelo Samu, mas não resistiu aos ferimentos e morreu.
Os PMs tentaram impedir o ataque ao homem, mas não conseguiram. Um policial militar teve um corte no braço provocado por uma garrafa quebrada. Um policial civil também se machucou.
Viaturas da Força Tática foram posicionadas em frente à loja para impedir novos atos de vandalismo e saques durante a noite. No interior do local, havia botijões de gás, que poderiam provocar explosões e causar danos graves caso fosse cumprida a ameaça de incendiarem o prédio.
Investigação
A Polícia Civil pretende concluir em até 30 dias a investigação do caso. Segundo o delegado Alexandre Souza, responsável pela apuração, o inquérito deve ser concluído sem a penalização do suspeito, em razão da extinção de punibilidade, uma vez que ele morreu.
A investigação seguirá coletando depoimentos de testemunhas nos próximos dias, além de aguardar os laudos periciais produzidos pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP). Uma segunda investigação também vai apurar quem são os responsáveis pelo linchamento do suspeito.