De tanto apanhar dos colegas e sofrer bullying na escola, um adolescente passou a cultivar pensamentos antissemitas, espalhar desenhos de temática nazista pelos cadernos e dizer que iria “matar todo mundo”. Preocupada, a diretora avisou o Ministério Público (MP) e menos de uma semana depois um procurador de Justiça visitou o rapaz de 16 anos.
O episódio, ocorrido no interior do Rio Grande do Sul, foi a primeira intervenção do Núcleo de Prevenção à Violência Extrema do MPRS (Nupve), concebido em 2024 para evitar agressões e desradicalizar jovens e adolescentes. Desde fevereiro, o procurador Fábio Costa Pereira e o promotor Márcio Abreu Ferreira da Cunha neutralizaram 37 ameaças sérias de ataques no Estado.
Ao investigar 107 potenciais atentados em curso, eles cumpriram 21 mandados de busca e apreensão. Três adultos foram presos e nove adolescentes internados. Outros quatro receberam internações psiquiátricas. Uma dupla detida já estava de posse da planta baixa da escola que pretendia atacar. Ao menos 32 ameaças foram descartadas, inclusive contra autoridades públicas, mas todos os suspeitos recebem monitoramento contínuo.
— Em quase todos os casos há uma combinação que se repete: bullying, família desestruturada e excesso de tela. Os adolescentes usam o celular como o espelho de Alice, cruzando para um universo virtual de extrema violência. Quando saem de lá, meninos negros se tornam supremacistas brancos, alguns são jihadistas e nazistas ao mesmo tempo. É uma confusão alimentada pelo ódio, uma ausência de identidade — relata Pereira.
O MP não informa detalhes, os nomes dos envolvidos nem os municípios onde moram, mas Zero Hora apurou que houve dois ataques em escolas no Estado em 2024, com dois adolescentes feridos a faca. Uma das vítimas não sofreu ferimento mais grave porque estava vestindo um casaco grosso. Em outro caso, um rapaz jogou seis coquetéis molotov contra uma loja maçônica no que seria um teste para um atentado maior.
A preocupação com o recrudescimento da violência juvenil cresceu a partir do aumento de casos em colégios Brasil afora. Segundo estudo da Universidade Estadual de Campinas, somente entre 2001 e 2023 ocorreram 36 ataques violentos em escolas brasileiras, 21 deles em 2022 e 2023.
No final do ano passado, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) procurou os procuradores-gerais de Justiça para alertar para os riscos inerentes ao mês de abril. O período acumula investidas no mundo todo por ter sido em 20 de abril de 1999 que dois estudantes realizaram um massacre em Columbine, nos Estados Unidos, matando 12 alunos, um professor e ferindo outras 21 pessoas. Oito dos 11 ataques registrados no país no ano passado foram em abril, bem como os dois realizados este ano no RS.
A partir da provocação da Abin, o procurador-geral de Justiça, Alexandre Saltz, determinou a criação do Nupve. Atuando em cooperação com a Polícia Civil e a Brigada Militar (BM), Pereira e Cunha começaram a desenvolver uma rede de vigilância no Estado.
A primeira ameaça, narrada no início deste texto, foi identificada porque a diretora do colégio havia passado por treinamento de uma patrulha escolar da BM. Grande, obeso, com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e fora da série regular no colégio, o adolescente era criado por mãe solteira, cujo caçula também tem TEA. Com frequência, o filho mais velho chegava em casa com o rosto inchado pelas agressões sofridas na escola.
Após a intervenção inicial, Pereira passou a questionar o rapaz para entender as raízes do ressentimento e buscar formas de reverter a radicalização. Nas conversas, o promotor descobriu que uma das frustrações era não participar da banda da escola. Poucos meses depois, a rede de assistência organizada pelo MP conseguiu transferir a família para outra cidade, onde ele agora frequenta um CTG e é membro da banda marcial da nova escola.
Muitas vezes o que esses guris querem é acolhimento. As ameaças que fazem funcionam como pedido de socorro. Eles pedem ajuda, eles gritam.
FÁBIO COSTA PEREIRA
Procurador
Em outra região do Estado, um menino de 14 anos já havia separado roupa preta, touca ninja, coturnos, luvas, três facas e um canivete para efetuar o ataque. Alertado, o MP apreendeu os equipamentos e passou a interrogar o adolescente. Descobriu que ele havia se radicalizado usando o celular do pai e a rede de internet de um vizinho.
A raiva era alimentada pela situação de penúria da família, cujo pai, desempregado, cuidava sozinho dos cinco filhos numa casa emprestada e sem camas para todo mundo. Os promotores acabaram comprando uma cama para o rapaz deixar de dormir no chão.
— Eles odeiam, mas não sabem quem, nem o quê. Precisam dar um nome para esse ódio. A sociedade precisa estar atenta — preconiza Pereira.
Perfil dos agressores
Único órgão do país dedicado a evitar ataques em escolas e desradicalizar jovens e adolescentes, o Núcleo de Prevenção à Violência Extrema do Ministério Público (Nupve) traçou um perfil dos potenciais agressores no Rio Grande do Sul. Em geral, eles cursam o Ensino Fundamental de escolas estaduais, são repetentes ou têm déficit cognitivo, têm entre 10 e 25 anos (a chamada adolescência estendida) e oito em cada 10 são meninos. Todos são alvo de bullying e se radicalizaram nas redes sociais.
Segundo os membros do MP Fábio Costa Pereira e Márcio Abreu Ferreira da Cunha, quase sempre os jovens são recrutados em comunidades virtuais de big techs como TikTok e Instagram. A partir de interesses comuns identificados via hashtags, são direcionados para aplicativos onde a moderação é mínima, como Telegram, Discord ou Project Z, nas quais os próprios criadores de cada comunidade ditam o que pode ser publicado.
São meninos com um vazio existencial, que usam as comunidades para se encontrar. A vida virtual passa a ser uma extensão da vida real. Eles adotam um vocabulário próprio, fazem as mesmas tatuagens e usam roupas parecidas.
MÁRCIO ABREU FERREIRA DA CUNHA
Promotor
Nas salas de bate-papo, muitos aprendem técnicas de ataque, confecção de bombas e compartilham cenas de maus-tratos a animais e automutilação. Também desenvolvem culto a armas e são expostos à pedofilia.
Sem fronteiras, o ambiente digital interliga jovens de todos os Estados do país e do Exterior. Usando nicknames muitas vezes inspirados em outros agressores e avatares retirados de animes orientais, eles criam escores a partir do grau de violência virtual que praticam. Dessa forma, se tornam influentes e até fontes de inspiração para os recém-chegados.
A ação do Nupev
A partir do material apreendido, sobretudo os celulares, o Nupev mapeia a rede de contatos dos adolescentes e amplia o raio de investigação. Na última semana, Pereira percorreu três municípios do Interior para palestrar em escolas e conversar com cinco jovens cujo sistema de alerta do MP indicou potenciais ameaças.
Quando identifica um caso desses, o primeiro passo do Nupev é desengajar o potencial agressor, ou seja, tirar o adolescente do “mercado da violência”. Muitas vezes isso só é possível com internação. A etapa seguinte é a mais difícil, a desradicalização. Depois, o objetivo é a reinserção na sociedade.
Para tanto, Cunha e Pereira preconizam a formação de redes de apoio com profissionais de psicologia, psiquiatria e assistência social, alinhados com professores, diretores e equipes de patrulha escolar. Não por acaso, cada medida de busca e apreensão é antecedida por ações de inteligência das forças policiais para minimizar riscos. A principal medida de prevenção, porém, é o monitoramento doméstico.
— Muitas vezes não adianta colocar catraca, câmeras de segurança ou policiais na escola. A prevenção está em casa. Assim como na rua, é preciso saber que espaços os adolescentes frequentam na internet — diz Pereira.
A partir dos casos investigados, os promotores estão finalizando um guia para identificar elementos preditores de um processo de radicalização, que vão desde o isolamento dos adolescentes até o vestuário usado (veja abaixo). Em pouco mais de 10 meses de atuação, eles coletaram cerca de 20 horas de depoimentos em todo o Estado.
— Estamos colecionando casos e guardando memória. É uma área onde há pouca pesquisa no Brasil. Antes de mais nada, é preciso ouvir para entender. Não se resolve só com punição — resume Pereira.
Veja os sinais da radicalização
Batizado de Projeto Sinais, guia do MP ajuda a identificar preditores de radicalização de jovens e adolescentes:
Baixa autoestima
- Isolamento e sentimento de desvalorização, com busca de atenção e validação por meio de comportamento de risco;
Interesse por violência extrema
- Fixação em conteúdos violentos, sejam filmes, vídeos ou jogos, bem como notícias de ataques em escolas;
Interesse por psicopatas
- Atração por assassinos seriais ou criminosos violentos, com idealização de suas características;
Vazamento de intenções
- Comunicação expressa de prática de atos violentos. Por vezes, essa vontade é vazada de forma não intencional;
Ausência de limites
- Sentimento de permissividade acentuada pela falta de limites ou regras impostas em casa;
Excesso de tela
- Acesso irrestrito a dispositivos eletrônicos, sem regras claras de uso nem monitoramento dos ambientes digitais frequentados;
Uso de redes sociais
- Uso frequente de redes sociais de baixa ou nenhuma moderação, como Telegram, Discord e Project Z;
Falta de afetividade
- Ausência de laços de afetivos fortes na família e na escola, criando sensação de isolamento social;
Bullying
- Experiência de bullying, seja como agressor ou vítima, na escola ou no bairro;
Roupas, acessórios e símbolos
- Uso de máscaras de caveira, roupas militares, símbolos nazistas e tatuagens de inscrições como “cansado”, “suicide boys” e “cry4 help”.