Por unanimidade, o uso da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídios foi considerado inconstitucional pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Na sessão desta terça-feira (1°), todos os ministros acompanharam o voto do relator do caso, ministro Dias Toffoli.
Em junho, já havia sido formada maioria para tornar a justificativa inconstitucional. Com a decisão, a legítima defesa da honra não poderá mais ser usada por advogados, policiais ou juízes. A proibição vale tanto para a fase de investigação dos casos quanto para as situações em que os processos chegam ao Tribunal do Júri.
O Supremo julgava ação protocolada pelo PDT em 2021 para impedir a absolvição de homens acusados de homicídio contra mulheres com base no argumento de que o crime teria sido cometido por razões emocionais, como uma traição conjugal, por exemplo.
É um avanço? É. Mas é lamentável que em 2023 precisemos estar utilizando essa tese.
RUBIA ABS DA CRUZ
Mestre em Direitos Humanos, sócia da ONG Themis e integrante do consórcio da Lei Maria da Penha
A advogada Rubia Abs da Cruz, que é mestre em Direitos Humanos, sócia da ONG Themis e integrante do consórcio da Lei Maria da Penha, avalia que foi acertada a decisão do STF. No entanto, ela considera “lamentável” que o tema ainda precise ser discutido na atualidade.
— É um avanço? É. Mas é lamentável que em 2023 precisemos estar utilizando essa tese. É um problema cultural que o STF tem que se posicionar mesmo e questionar. Foi uma decisão importante, embora tardia — destaca a advogada.
A especialista comenta que essa tese já vinha sendo refutada em diversos tribunais e até mesmo no Tribunal do Júri. Ela pontua que o impedimento da utilização deste argumento garante que a opinião dos jurados não seja contaminada por uma perspectiva machista.
— No Tribunal do Júri são pessoas da comunidade que podem ser influenciadas negativamente por um advogado que traga essa tese como algo viável. Por isso é importante banir, pela dignidade da pessoa humana e pela igualdade dos direitos — salienta Rubia.
Histórico de violência contra mulheres
Para a desembargadora Marcia Kern, integrante da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça (TJ), que trabalha com violência doméstica e feminicídios, a definição do Supremo tem um caráter pedagógico.
— É preciso que a gente fale abertamente que não pode alegar legítima defesa da honra em caso de feminicídio porque o Brasil, culturalmente, tem um histórico de permitir o homicídio de mulheres acusadas de adultério — frisa a desembargadora.
Ela pontua que a tese se originou das Ordenações Filipinas, que são um conjunto de leis promulgado no Brasil em 1603, no qual o marido era autorizado a castigar fisicamente a mulher, os criados, discípulos, filhos ou escravos. As normas foram abolidas pelo Código Criminal brasileiro de 1830.
Kern também comenta que no imaginário machista a mulher ainda ocupa um papel relacionado à procriação e que o adultério representa uma ameaça à continuidade da prole.
— O adultério foi considerado crime até 2005 com penas diferentes para homens e mulheres. Essa questão tem muito a ver com a legitimação da prole, do uso da mulher como objeto de procriação. A mulher é vista como responsável pela maternidade e o adultério se torna um risco. Estamos com um pensamento anterior ao século XIX, que foi definido em função de uma cultura machista — diz a desembargadora.
Discurso implícito
O promotor Marcelo Tubino, coordenador do centro de apoio operacional do júri do Ministério Público (MP) gaúcho, comenta que, embora a tese de legítima defesa da honra não seja usada com frequência, o que geralmente ocorre é a sugestão indireta de que os crimes cometidos contra as vidas das mulheres possam ser justificáveis devido a algum tipo de comportamento da vítima. Segundo ele, a decisão do STF terá impacto sobre este tipo de prática no Tribunal do Júri.
O que permanece é um discurso implícito, indireto, que tenta colocar em um mesmo patamar honra e vida.
PROMOTOR MARCELO TUBINO
Coordenador do centro de apoio operacional do júri do Ministério Público gaúcho (MPRS)
— Muitas vezes, o advogado não fala diretamente, mas sugere que o crime foi cometido por conta da conduta da vítima, de forma muito sutil. O que permanece é um discurso implícito, indireto, que tenta colocar em um mesmo patamar honra e vida. — explica Tubino.
Ele pontua que o feminicídio é um dos crimes mais complexos de combater e que os números do RS preocupam. O promotor reitera que além de elementos legais, há questões culturais que perpetuam os crimes contra as vidas das mulheres.
— A violência contra a mulher é um tipo de crime que não estamos conseguindo diminuir como estamos conseguindo com outros tipos de crimes. Por isso, essa decisão é muito bem-vinda. Temos uma questão histórica e cultural muito forte. Especialmente no RS, essa cultura patriarcal, esse pensamento retrógrado é muito forte — comenta.