No saguão do auditório do Colégio Marista, em Santa Maria, familiares de vítimas e sobreviventes do incêndio da Boate Kiss trocavam abraços na noite desta quinta-feira (26). Estavam ali para assistir ao primeiro episódio da série documental Boate Kiss - A tragédia de Santa Maria, da Globoplay.
Na entrada, uma das mães que aguardava para assistir a série não perdeu a filha no incêndio, mas se solidarizou com a dor dos pais. A filha dela Luanne Garcez da Silva, 27 anos, foi vítima de feminicídio em abril do ano passado, na mesma cidade.
— Decidimos participar porque achamos necessário que toda a comunidade de Santa Maria se mobilize nesse momento. Assistir significa lembrar. Doi muito, até para quem não é parente, mas é importante lembrar, falar. É importante que toda essa tragédia não caia no esquecimento na nossa cidade. Também tive uma filha vítima de violência e sei que é importante a gente lembrar e clamar por Justiça — disse Diaine Garcez, 55 anos.
A direção da série é do jornalista Marcelo Canellas, numa produção em parceria com a TV Ovo, coletivo audiovisual de Santa Maria. Foi ele quem fez a abertura pouco antes da exibição.
— O lugar mais difícil de se chegar é o lugar do outro. É tão difícil de se chegar que eu só cheguei após nascimento do primeiro filho. O jornalismo me ensinou a chegar do outro — disse, descrevendo um episódio no qual conversou com um pai que havia perdido um filho e que ele lhe provocou a imaginar como seria se nunca mais pudesse dar um beijo no filho.
— A gente gostaria que esse documentário fosse um grande abraço para vocês e para Santa Maria — afirmou, aos pais que perderam os filhos na tragédia.
As primeiras imagens mesclam cenas reais do dia da tragédia, com áudios desesperados de pessoas pedindo socorro, por telefone, à Brigada Militar e aos bombeiros.
— Tava lotada a boate. Tinha só uma porta para sair — diz uma das vozes.
Logo no início, a exibição desses momentos já provocou comoção na plateia.
Num momento dramático, a série reproduziu vídeos gravados dentro da boate. Num deles, pessoas tentam usar extintores, que não funcionam, e logo depois a luz cai, causando desespero e gritaria, na festa lotada. Sem ter como deixar o local, muitos precisavam pisar uns sobre os outros para alcançar a saída.
Colagens
Também foi oferecida opção para quem preferiu não assistir ao documentário. Com revistas e jornais velhos, um grupo de sete pessoas da comunidade optou por participar de uma atividade de colagem na praça. A ação foi proposta pela psicóloga Luiza Roos, integrante do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria.
— A ideia é trabalhar com o potencial de expressão da arte. Tem coisas que não conseguimos dizer. A colagem ajuda nesse processo — explicou Luiza.
Em uma das mesas, uma moradora local formou a palavra "memorial", seguida de um ponto de interrogação.
— A Kiss precisa ser transformada em um espaço de memória. A cidade não pode esquecer o que aconteceu — disse a participante, que conhecia vítimas da tragédia e preferiu se identificar apenas como Maria de Lourdes.
Parceria
O documentário mostra ainda no início a ligação de Canellas com a tragédia de Santa Maria. O jornalista gaúcho, que se formou em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), acompanha o caso desde o início. Devido à ligação com a cidade e com os moradores, no começo chegou a recusar um pedido da produção do Fantástico para que fizesse uma reportagem sobre o incêndio, mas, dias depois, mudou de ideia e rumou para o RS. Viajou depois disso inúmeras vezes à cidade para mostrar os desdobramentos.
O convite para realizar o documentário foi feito pelo coletivo audiovisual e Canellas levou a ideia à Globoplay, que topou realizar a série. A TV Ovo vem acompanhando a trajetória da AVTSM desde o começo.
— Fomos a campo e a ideia sempre foi o ponto de vista das famílias e vítimas. Mas foi mudando e o júri foi pra POA, houve a anulação. O que a gente imaginava que seria o desfecho, virou um documentário sem desfecho — explicou Canellas.
Primeiro episódio: 27 de janeiro de 2013
Ao longo do primeiro episódio, intitulado 27 de janeiro de 2013, a série situa o fato de Santa Maria ter se tornado referência universitária, com a construção do complexo da UFSM. A Boate Kiss foi escolhida por estudantes do curso de Agronomia para realizar a festa Agromerados na noite de 26 de janeiro de 2013.
Na sequência, o documentário mostra a história da boate, como foi o incêndio, a busca pelos feridos e o reconhecimento das vítimas. Aborda ainda os traumas deixados por aquela madrugada, tanto em quem foi afetado diretamente, como para as pessoas que atuaram no socorro e amparo.
Um dos ouvidos é Flávio da Silva, ex-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). A filha dele, Andrielle Righi da Silva comemorava os 22 anos na festa. O pai esteve na frente da batalha travada por familiares ao longo desses 10 anos, clamando por Justiça.
— Aquele 27 de janeiro de 2013 acabou com o nosso e o sonho dela, como acabou com o sonho de muitos meninos e meninas, e de muitos pais também — disse Silva num dos trechos da entrevista.
Um dos médicos que atendeu as vítimas em frente à boate, Carlos Fernando Dornelles falou sobre o drama daquela madrugada. Muitas vezes as pessoas na volta não compreendiam ou não aceitavam que familiares e amigos já estavam mortos.
— É uma imagem que passa muito também pela minha cabeça. (...) Duzentos e quarenta e dois jovens que saíram para se divertir acabaram perdendo a sua vida sem provocarem nenhuma situação que incitasse isso — afirmou, emocionado, no documentário.
Também foram ouvidos sobreviventes, entre eles Gabriel Rovadoschi Barros, 28 anos, que atualmente é presidente da AVTSM, e que por muitos anos não conseguiu falar sobre a tragédia. O jovem reside quase ao lado da boate até hoje.
— A questão de estar fisicamente perto é um detalhe praticamente, no sentido de que eu enfrento isso todos os dias — narrou na série.
Um dos delegados envolvidos na investigação, Sandro Meinerz, aponta na série que as pessoas foram se empurrando, sem encontrar a saída, e que os seguranças admitiram ter segurado a porta de acesso à rua por um a dois minutos. Nesse período, jovens teriam começado a se asfixiar. Um dos momentos que marcou o policial foi o reconhecimento dos corpos das vítimas, no ginásio Farrezão.
—Foi sem dúvidas nenhuma, da minha parte, o dia mais difícil da minha vida — disse o delegado.
A série é formada por cinco episódios, que retratam desde o incêndio, as investigações, a busca pelos responsáveis e o julgamento realizado em dezembro de 2021. No júri, os quatro réus acusados de homicídio com dolo eventual foram condenados. Mais tarde, no entanto, em agosto de 2023, o júri foi anulado pelo Tribunal de Justiça e foi determinado que novo julgamento seja realizado. O Ministério Público e a associação de familiares ingressaram com dois recursos, que ainda aguardam andamento.
Na saída do auditório, familiares e sobreviventes voltaram a trocar abraços. Muitos comovidos com a exibição.
Um dos sobreviventes ouvidos na série, Maike Adriel dos Santos, 30 anos, afirmou que gostou da forma como o tema foi abordado no primeiro episódio.
— Foi bem impactante. Acredito que seja também uma forma de prevenção a gente documentar a nossa história, para que a gente tenha esse acervo, seja mostrado futuramente e que não se repita — disse o desenhista industrial, que na tragédia perdeu uma das melhores amigas.
Logo depois, retornaram em direção à Praça Saldanha Marinho, onde uma vigília entrará pela madrugada desta sexta-feira (27).