Os relatos de clientes de construtora, moradores de diferentes municípios gaúchos, se repetem: no local onde deveria ser erguida a tão esperada casa própria, restou apenas um resquício do início das obras, um sonho que decolou apenas alguns centímetros do chão. Segundo as famílias, o problema teria sido causado por uma empresa de Canoas, na Região Metropolitana, que promete entregar casas e desaparece após receber o dinheiro pelo serviço.
Os clientes contam que, sem a moradia, a comemoração com amigos e familiares pelo imóvel próprio dá lugar à apreensão, com dezenas de ligações e mensagens na tentativa de reaver o valor ou fazer com que a trabalho seja retomado.
Procurada, a empresa Segura Construtora afirmou que os problemas ocorreram em razão do impacto da pandemia e que pretende ressarcir os clientes. A empresa admitiu que ao menos oito clientes têm serviços pendentes, e que o valor a ser devolvido gira em torno de R$ 100 mil (confira abaixo o relato completo do responsável pela construtora).
GZH conversou com três clientes que relatam terem quitado as quantias de R$ 12 mil, R$ 15 mil e R$ 17 mil e, mesmo com contrato assinado, teriam ficado sem a moradia. Em um grupo no WhatsApp, composto por mais duas clientes, eles se dizem vítimas da mesma empresa e buscam reparação. Há ainda outra mulher que alega que o imóvel foi entregue, mas fora das condições para uso: as paredes de madeiras estariam com vãos e o forro do teto estaria torto, com parte já caída, entre outros problemas. A Polícia Civil afirma que pelo menos duas investigações foram abertas, ainda em fase inicial.
Um dos casos aconteceu em Lajeado, no Vale do Taquari, em setembro de 2020, quando uma manicure de 27 anos, que prefere não ser identificada, afirma ter assinado contrato com a Segura. Conforme o relato da jovem, depois de receber um pedaço do terreno da mãe para erguer sua casa própria, ela começou a buscar por empresas de construção na internet. A manicure afirma que os orçamentos que recebeu eram parecidos, mas que o atendimento da empresa de Canoas pareceu mais ágil e decidiu fechar negócio.
Depois de uma visita dos responsáveis pela construtora ao terreno e de acertados os detalhes, o contrato foi feito. O documento previa que 50% do valor total da obra — avaliada em cerca de R$ 16 mil — fosse pago antes do começo do trabalho e a transferência foi feita.
No dia seguinte, uma equipe de funcionários chegou ao local com materiais de construção e começou o serviço.
— Ainda naquela tarde, o dono da empresa me mandou mensagem dizendo que quando a obra começava eu tinha de quitar mais uma parte do valor, além dos 50% já pagos. Como eles estavam ali trabalhando, me pareceu algo muito seguro, sério, e eu transferi. Só que depois não apareceram mais. No total, eu paguei uns R$ 12 mil e não recebi a casa. A obra está lá, parada. Eles só apareceram de novo quando foram notificados de que eu estava entrando com um processo. Vieram com um caminhão e uns materiais, mas depois sumiram de novo — conta a manicure.
Segundo a jovem, o valor pago a construtora foi adquirido em um empréstimo feito pela mãe, que é aposentada. A manicure conta que até hoje arca com as parcelas, um valor de quase R$ 700 por mês, incluindo os juros. Enquanto isso, a manicure aguarda a primeira audiência do processo que move contra a Segura, marcada para junho. Em razão de todos os gastos, afirma que não consegue tocar a obra da casa.
Quando tento conversar com o dono da empresa, ele inventa desculpas, diz que a mulher teve infarto, que alguém teve covid, te ofende. Já me disse que o problema sou eu, que estou dificultando as coisas.
MANICURE
Cliente da construtora
— É algo muito traumático. Eu sou muito ansiosa, já não sou uma pessoa com muitas condições financeiras. Todo mês isso me afeta, financeira e emocionalmente. Não tenho mais unhas de tanto que roí, não durmo à noite. Quando tento conversar com o dono da empresa, ele inventa desculpas, diz que a mulher teve infarto, que alguém teve covid, te ofende. Já me disse que o problema sou eu, que estou dificultando as coisas, que se não fosse por minha culpa, a casa já estaria pronta. Fala as mesmas coisas para todos. É horrível. Nada justifica uma maldade dessas — lamenta manicure.
Uma professora de Triunfo, na Região Carbonífera, também se diz lesada pela empresa. Uma cliente, que também preferiu manter o anonimato, conta que ela e o marido receberam um terreno do sogro, além de uma quantia em dinheiro, para que construíssem a casa própria no município. Ela afirma que pagou R$ 15 mil para a construtora, mas a obra feita não passou do aterro e de alguns tijolos erguidos para o banheiro.
— Eles foram lá conosco, nos prometeram a casa dos nossos sonhos, só que isso não aconteceu. Demos parte do dinheiro e depois eles simplesmente abandonaram a obra. Temos o contrato, fizemos o reconhecimento em cartório. O dono é um senhor de mais idade, que se aproveita para enganar as pessoas. Agem de má-fé, chegaram a mudar o nome da empresa para seguir mentindo e enganando. A gente quer fazer justiça, mas também quer alertar para que outras pessoas não passem por isso — afirma a professora.
A professora diz que tentou negociar com a empresa de diferentes formas desde que fechou negócio, em setembro de 2021. Pediu parte o valor de volta, sugeriu que a construtora pagasse pelas aberturas da casa, mas afirma que não teve sucesso.
Ele diz que vai pagar uma parte e não cumpre. Depois fala que na semana seguinte iria retomar a obra. Pede uns dias, diz que alguém ficou doente. Fica enrolando.
PROFESSORA
Cliente da construtora
— Ele diz que vai pagar uma parte e não cumpre. Depois fala que na semana seguinte iria retomar a obra. Pede uns dias, diz que alguém ficou doente. Fica enrolando. Me apavora que uma pessoa idosa fique aplicando golpes nas pessoas, brincando com a vida da gente. Esse dinheiro era das economias do meu sogro, e agora temos de pagar de volta e seguimos morando de aluguel — lamenta.
As duas mulheres afirmam que se conheceram pelas redes sociais, ao pesquisarem sobre a empresa depois que os problemas apareceram. Junto a outras pessoas que se dizem lesadas, criaram um grupo para reunir supostas provas contra a construtora. Segundo as mulheres, nem todas as famílias no grupo, no entanto, têm condições de arcar com as despesas de um processo judicial, e por isso algumas não teriam dado seguimento as histórias.
"Não sou mais a mesma", diz mulher que contratou empresa
Em um caso um pouco diferentes dos relatados, uma dona de casa de 40 anos afirma que chegou a receber a casa da empresa, construída em um terreno da família em Nova Santa Rita. No entanto, a residência de madeira, entregue em 2021, segue fechada, sem uso. A mulher afirma que as paredes do local ficaram mal feitas e que o forro do teto de alguns cômodos está torto, entre outros problemas.
— A gente recebeu a casa, mas só porque começamos a brigar. Todos os dias a gente mandava mensagem para eles virem. A gente tinha de praticamente implorar, parecia que não estava pago, que a gente que estava devendo para eles. Foi por insistência nossa, ou eles não vinham trabalhar. Mas a casa está horrível, tanto que nem moramos lá. Não temos dinheiro para arrumar o que precisa. Tem telha quebrada, tem goteira, o piso não é o que escolhi.
Segundo ela, o valor gasto — cerca de R$ 30 mil — foi o que o marido recebeu ao sair de uma empresa em que trabalhou por alguns anos. A moradia era o sonho do casal e do filho, de 14 anos. A mulher conta que, em razão dos problemas, segue morando de forma provisória com o sogro.
— É muito triste. O meu marido nem gosta de ir lá olhar. Ele trabalhou por 12 anos por esse dinheiro e foi o mesmo que colocar fora. Eu não sou mais a mesma pessoa desde que isso aconteceu. Não durmo mais. A gente olha para ela e dá uma tristeza.
Polícia afirma que investigação inicial foi aberta
A reportagem contatou as equipes da Polícia Civil nos três municípios em que os clientes registraram boletim de ocorrência. Conforme o delegado regional de Canoas, Mario Souza, que também responde por Nova Santa Rita, uma investigação inicial foi aberta. O delegado não informou detalhes dos casos, porque o trabalho ainda é inicial, mas afirmou que as equipes estão "cientes de casos na região".
Segundo ele, no entanto, é preciso observar se os casos se tratam de estelionato. Em relação a casa que foi entregue com defeitos, por exemplo, pode ser necessário buscar reparação judicial:
— Nesse caso, o mais indicado pode ser buscar a reparação no âmbito civil, por exemplo, porque se distancia do estelionato. É preciso ainda reunir mais informações. No entanto, se for comprovado que o comerciante teve a intenção de lesar o consumidor, também é considerado crime. De qualquer forma, a polícia está à disposição para orientar as pessoas e realiza diligências investigativas para verificar os casos — diz Souza.
O delegado destaca que alguns cuidados podem ajudar a evitar esse tipo de problema, como pesquisar sobre a empresa na internet e, se possível, conversar com clientes que já tenham contratado o serviço.
— É claro que a vítima não tem culpa, nunca. Ninguém tem o direito de enganar ninguém, independente das condições oferecidas. Mas o alerta é importante: vale confirmar as informações, não fazer contato com a empresa só pelas redes sociais — explica Souza.
Em relação ao caso de Lajeado, cujo boletim de ocorrência foi feito em janeiro de 2021, a Polícia Civil do município afirmou apenas que há investigação em aberto. O caso de Triunfo, registrado de forma online no final de março, ainda precisa ser despachado para a delegacia responsável.
A Polícia Civil de Canoas afirma que denúncias sobre o caso podem ser feitas pelo WhatsApp da delegacia: (51) 98459-0259 ou pelo Disque-Denúncia, no telefone 181.
"Não há golpe", diz empresário
Responsável pela construtora, Jorge Ubirajara Santanna, 68 anos, afirma que tem conhecimento sobre os casos e que a empresa trabalha para resolver os problemas. Segundo ele, oito clientes estão nesta situação. O valor total gira em torno de R$ 80 mil a R$ 100 mil, diz Santanna.
— Ninguém estava preparado para a pandemia. A gente ficou sem poder trabalhar, o valor dos materiais também inflacionou, são várias coisas. Muita gente quebrou na pandemia. Mas nós queremos resolver e entregar. Só precisamos de um prazo um pouco maior. Tem casos que tentamos acordo e a pessoa não quis, foi para a Justiça, e aí a gente precisa esperar.
Perguntado sobre a demora para solucionar os problemas — alguns teriam ocorrido em 2020 — o empresário voltou a culpar a pandemia. Santanna diz que aguarda um financiamento para colocar a situação em dia. Ele acredita que em "no máximo 80 dias" a situação estará solucionada.
— É um financiamento particular, de uma pessoa que irá nos financiar, e deve entrar em alguns dias. Não estamos fugindo da raia. Não existe golpe. A gente está trabalhando para devolver o que é deles, o que não deu certo. A gente vai devolver o valor a quem quiser o valor ou construir a casa para quem preferir assim. Nós queremos resolver.