Às 9h de 15 de maio de 2020, Alexandra Dougokenski, então com 32 anos, ingressou no Conselho Tutelar de Planalto. Comunicou às conselheiras que o filho caçula, Rafael Mateus Winques, 11, havia desaparecido de casa na noite anterior. Era algo incomum para o município de 10 mil habitantes no norte do Rio Grande do Sul. Começava ali a angústia que tomaria conta de familiares, vizinhos, amigos, professores, coleguinhas e até desconhecidos, sem respostas sobre o paradeiro do menino.
Pouco mais de uma semana depois, a mãe confessou à polícia que o filho estava morto, e seu corpo jazia em uma caixa de papelão a poucos metros da residência onde viviam. Disse ter dopado o filho com medicamentos para que ele parasse de mexer no celular e que isso teria causado sua morte, sem intenção.
A partir de segunda-feira (21), às 9h30min, a cidade reviverá o estarrecimento que tomou conta dos moradores há um ano e 10 meses. Alexandra retorna a Planalto para ser julgada pelo assassinato de Rafael. O júri deve se estender ao longo da semana, com previsão de durar até quatro dias.
Sete jurados decidirão se a mãe é ou não culpada pelo assassinato do menino, descrito como tímido, excelente em matemática e que sonhava ser policial. Além de ter sido dopado com dois comprimidos de diazepam, o garoto foi estrangulado com uma corda de varal. Ao longo da investigação, Alexandra apresentou diferentes versões para o caso. Na primeira, admitiu somente ter ministrado os medicamentos para o filho dormir e que isso teria causado sua morte. Atualmente, a defesa da ré sustenta que ela não matou o caçula.
Quando falou à Justiça durante a instrução do processo, Alexandra deu nova explicação para o crime. Acusou o ex-marido, o agricultor Rodrigo Winques, de ter matado o garoto. A Polícia Civil chegou a investigar o pai na época do fato, mas constatou que ele estava em Bento Gonçalves, na Serra, onde residia, na noite em que o menino sumiu. Mais uma vez, a defesa pretende sustentar a inocência da mãe, que está presa desde a descoberta do crime.
— Segundo a versão da Alexandra, quem matou de forma culposa, sem intenção, foi o Rodrigo. Vamos mostrar tudo o que foi produzido no processo. Ela vai falar, está disposta a contar tudo. Tem muita coisa que vai chocar as pessoas — afirma Jean Severo, advogado que integra a banca responsável por defender a ré.
Durante o interrogatório na Justiça, Alexandra não quis responder perguntas da acusação — isso poderá se repetir no júri. O depoimento dela à juíza Marilene Parizotto Campagna, mesma magistrada que presidirá o julgamento, durou cerca de quatro horas em dezembro de 2020. Agora no júri, a ré será a última a ser ouvida, após todas as 11 testemunhas falarem aos jurados. Entre aqueles que falarão à Justiça, estão uma professora de Rafael, policiais que atuaram no caso e familiares.
Acareação
Em razão das versões divergentes apresentadas por Alexandra e o ex-marido Rodrigo, é possível que após o interrogatório da ré ainda seja realizada acareação entre os dois. Neste momento, os pais de Rafael ficarão frente a frente e terão que responder mais perguntas sobre o caso, com foco nos pontos controversos. Assistente de acusação e responsável por representar o pai de Rafael no processo, o criminalista Daniel Tonetto considera a versão de que o agricultor teria matado o filho "sem nexo e absurda".
— Temos toda a certeza de que ela é culpada. Ela mudou de versão no mínimo quatro vezes. Cada momento fala uma coisa. Em relação à tese absurda de que foi o Rodrigo o autor, toda a prova pericial, testemunhal, apontam sem deixar a menor dúvida que o Rodrigo não tem nada a ver com isso. Ele estava há mais de 300 quilômetros dali. É um verdadeiro absurdo — afirma Tonetto.
Temos provas suficientes para que a Alexandra saia condenada por todos os crimes. Vamos pedir a aplicação da pena máxima. Não se busca vingança. O processo existe para buscar justiça.
MICHELE DUMKE KUFNER
Promotora de Justiça
Embora seja um momento aguardado do júri, a acareação pode não ser longa, já que as respostas, tanto de Alexandra quanto de Rodrigo, devem se limitar aos pontos conflitantes dos depoimentos. O júri, no entanto, pode durar entre três e cinco dias, segundo estimativa de Judiciário, MP e defesa. Durante todo esse período, os jurados ficarão incomunicáveis e serão acompanhados por oficiais de Justiça.
Júri complexo
A promotora Michele Dumke Kufner, há seis anos na carreira, está diante do júri mais trabalhoso a ser enfrentado. Mesmo antes de ser descoberto o assassinato do menino, o Ministério Público já acompanhava o caso do desaparecimento. Michele, que é mãe de duas crianças, chegou a visitar Alexandra na residência onde ela vivia com os filhos na Rua Siqueira Campos. Estranhou, na época, a frieza da mulher, que não demonstrava desespero com o desaparecimento de Rafael, enquanto a cidade já estava mobilizada nas buscas.
— Diferentemente de todos os júris que já fiz, não vou ter uma mãe na plateia chorando porque perdeu filho. Vou ter uma mãe usando de todas as formas possíveis, das mais sórdidas mentiras, para criar versões para tentar escapar da responsabilidade pela morte do filho. Mãe dá a vida, não tira — afirma.
Em razão da complexidade do caso, o Ministério Público optou por levar ao plenário três promotores de Justiça. Além de Michele, estarão no júri Diogo Gomes Taborda, de Dom Pedrito, na Campanha, e Marcelo Tubino Vieira, da Promotoria de Justiça Criminal de Alvorada. A banca de defesa de Alexandra é composta por sete advogados.
Nossa expectativa é a melhor: demonstrar a inocência da Alexandra. Ela não matou o Rafael e vamos provar isso. Só pedimos que primeiro Planalto nos ouça, ouça a versão da Alexandra, o que ela tem a dizer, ela pronta para falar.
JEAN SEVERO
Advogado de defesa
A extensão do processo exige dedicação de ambos lados. Somente de um aparelho celular foram geradas mil páginas de extração de dados. Há ainda quebras de sigilo e interceptações telefônicas. De materiais obtidos em análises das redes sociais foram acumuladas mais 14 mil páginas. Além disso, os depoimentos da fase de instrução também são analisados pelas partes, em buscas de argumentos para serem levados ao júri.
— Desde semana passada, estamos num ritmo intenso, exclusivamente para o júri. Temos trabalhado madrugada a dentro, revisando o processo, provas. É um processo muito grande, com muitos volumes de provas. Já fiz outros júris grandes, mas nenhum comparado a esse, pela repercussão estadual e nacional — afirma a promotora Michele.
É também devido a essa complexidade que os debates serão ampliados, ainda que se tenha somente uma ré. A acusação terá inicialmente duas horas e meia para apresentar seus argumentos. Na sequência, a defesa terá disponível o mesmo tempo. Ao final, o Ministério Público poderá pedir usar até duas horas para a réplica, caso decida usá-la, e a defesa terá o mesmo tempo. Isso pode levar os debates a se estenderem por até nove horas.
Plenário com distribuição de lugares diferente
Um clube, na área central de Planalto, será o cenário para o julgamento. No salão principal do prédio do Independente Futebol Clube estará a estrutura para receber o júri. Equipes do Tribunal de Justiça precisaram fazer adaptações na parte elétrica, além de transportar móveis e instalar banheiros químicos e gerador. Na visão da acusação e da defesa, o local onde se dará o julgamento não impacta no resultado. A plateia no clube poderá receber até 67 pessoas, entre elas familiares, comunidade e imprensa. Para ingressar, será necessário passaporte vacinal e haverá distribuição de senha.
Além do local onde ocorrerá, o júri em Planalto terá outro diferencial: a disposição na qual serão distribuídas as cadeiras para acusação e defesa. Via de regra, em júris, é habitual que o Ministério Público ocupe as cadeiras ao lado da Justiça. Desta vez, no entanto, a magistrada decidiu que tanto defesa quanto acusação estarão em linha reta. A juíza ficará no meio, entre as partes, e a ré estará sentada junto da defesa.
Severo considera que, para a defesa, a decisão da juíza traz uma "paridade de armas", já que os advogados poderão ficar mais perto do Judiciário, assim como a acusação.
— Acho importante que outros tribunais façam o mesmo. É muito bacana que a magistrada tenha esse entendimento. Ela está dando toda a condição para a defesa trabalhar em um júri sensível — diz o criminalista.
Em contrapartida, o MP se posicionou contra a decisão da juíza e deve fazer novo pedido no início do júri para que a distribuição das cadeiras seja alterada. Entre os argumentos da acusação está o fato de que essa disposição dificultará a visão, especialmente da ré, que não ficará de frente para os jurados e nem para os promotores. Até agora, a decisão foi mantida pela magistrada.
— Não concordamos com o posicionamento cênico. O MP e o Poder Judiciário ficam em linha porque são órgãos do Estado. A defesa não é. A juíza tem entendimento de que a defesa, por ser obrigação do Estado, tem que estar na mesma posição dos demais atores do processo. Não concordamos com isso — diz a promotora.
Os crimes
Durante a investigação do sumiço de Rafael, um ponto fez a polícia concluir que quem estava por trás do desaparecimento do menino era alguém de dentro da casa. Na entrada do quarto do garoto, havia um calendário, no qual foi assinalada a data 14 de maio. Foi Alexandra quem chamou a atenção dos investigadores para isso. No entanto, dias antes os mesmos policiais tinham vasculhado o quarto e verificado repetidas vezes o calendário. Até aquele dia, não havia nenhuma marca nele.
Esse é um dos crimes pelos quais Alexandra responde no julgamento: a fraude processual. Além disso, também é acusada de falsidade ideológica, por ter registrado na polícia o falso sumiço do menino, e ocultação de cadáver, por ter escondido o corpo da criança. Segundo a acusação, após asfixiar o filho, ela ainda vestiu o menino, pegou seus chinelos e óculos e levou o corpo até a garagem da casa vizinha. Ali, esvaziou uma caixa de papelão e depositou o corpo de Rafael no fundo. No homicídio, é acusada de quatro qualificadoras: motivo torpe, motivo fútil, asfixia e dissimulação e recurso que dificultou a defesa.
Entenda as qualificadoras do homicídio
Motivo torpe: para a acusação, Alexandra matou o filho para atender ao sentimento de dominação que tinha sobre a vítima e sobre as pessoas ao redor dela
Motivo fútil: segundo a acusação, a ré sentia-se incomodada com as negativas de Rafael em acatar suas ordens e diminuir o uso do celular e os jogos online
Asfixia: perícia apontou que menino foi morto por estrangulamento, com uso de corda de varal. Quando corpo foi encontrado, ainda estava com a corda
Dissimulação e recurso que dificultou defesa: é acusada de ter dopado a criança com medicamentos antes de cometer o crime, e aguardado até fazer efeito para matar Rafael
As explicações da ré
As quatro versões dadas pela mãe de Rafael para desaparecimento e morte do menino
15 de maio de 2020: contou que o filho tinha sumido de dentro de casa durante a noite. Procurou o Conselho Tutelar e registrou o caso na polícia
25 de maio de 2020: indicou o local onde estava o corpo, em caixa de papelão na garagem da casa vizinha. Alegou que o menino morreu após ela ministrar dose de sedativo
27 de junho de 2020: No Palácio da Polícia, em Porto Alegre, a ré admitiu ter usado a corda para estrangular filho. Esse interrogatório não poderá ser usado no júri porque a Justiça acatou pedindo da defesa, que alegou que Alexandra estava debilitada
18 de dezembro de 2020: à Justiça, acusou o ex-marido, pai de Rafael, de ter sido o autor do crime. Alegou ter encoberto a morte por medo. Esta é a versão mantida atualmente
Os passos do júri
- Sorteio dos nomes dos sete jurados
- Testemunhas e informantes ouvidos
- Ré é interrogada
- Acareação entre ré e pai de Rafael (se houver divergência de versões)
- Debates entre acusação e defesa
- Definição dos jurados se a ré é culpada ou inocente
- Sentença de condenação ou absolvição