Única juíza da família na qual nasceu, a magistrada Renata Gil, 48 anos, também se tornou ao longo da carreira pioneira em diferentes frentes. Foi a primeira mulher a ser eleita presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), entidade com 70 anos de fundação e que representa 14 mil juízes no país. Seu mandato terá duração de três anos, de 2020 a 2022.
— Na verdade, em sete décadas, fui a primeira mulher que se candidatou ao cargo. Veja como caminhamos a passos lentos — avalia a fluminense que tomou posse do novo cargo no último dia 11, em cerimônia no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília.
Antes de assumir o maior desafio da carreira, Renata também abriu caminho para a liderança feminina na Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj), entidade que dirige desde 2016. Em 21 anos atuando no Rio passou pelas comarcas de Conceição de Macabu, Silva Jardim e Rio Bonito, no interior, e desde 2008 é titular da 40 Vara Criminal do Tribunal de Justiça do RJ. Lá, foi responsável pela criação da Central de Assessoramento Criminal, que prevê sistema de rodízio de servidores do TJ para casos de combate ao crime organizado.
Ao longo da carreira, encarou momentos tensos nos quais foi ameaçada de morte e precisou solicitar reforço na segurança:
— Enfrentei momentos difíceis, de seis meses de duração de processo, que demandou recolhimento meu e da minha família. Nunca me senti efetivamente ameaçada ou constrangida de exercer minha função, mas sempre tive muito cuidado com as ameaçadas que recebi — recorda.
Após o assassinato da juíza Patrícia Acioli, em 2011, a AMB criou diretoria de segurança institucional para verificar como as ameaças a magistrados se resolvem ao longo do tempo. Também houve reforço para treinar os próprios integrantes da Associação.
— A gente faz treinamento de segurança pessoal com policiais do Estado, direção defensiva, defesa pessoal — afirma Renata.
Como juíza criminal em um estado dominado por facções, os obstáculos não apareceram apenas em forma de ameaças. Renata enfrentou diversos episódios de preconceito por ser mulher, especialmente quando chegou na comarca da capital:
— Os advogados subiam no tablado, numa atitude de constrangimento corporal em relação a mim, numa tentativa de intimidação. Usavam tom mais alto. Mas minha autoridade veio aparecendo naturalmente. Tenho notado que as mulheres têm conseguido superar isso — lembra.
Ainda assim, Renata entende que o avanço feminino na magistratura é lento. Integrante de comissão no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que mapeia entraves materiais e invisíveis enfrentados por mulheres para ingressar no Judiciário, ela conta que pesquisas da entidade mostram que, até 2010, houve aumento da participação feminina nos concursos para magistratura. Na última década, o movimento inverteu:
— Queremos descobrir as causas. Não sabemos se é falta de oportunidade ou se é excesso de atividade na vida da mulher que acaba sobrecarregando, lhe tirando a possibilidade de assumir o cargo. Se há essa sobrecarga, temos de criar incentivos e instrumentos para que ela possa galgar esse cargo — afirma.
"Tenho consciência que o desafio é grande"
Renata Gil nasceu em Niterói mas viveu a maior parte da vida no Rio de Janeiro. Ao se formar em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), não mirava a toga. Fez concursos para delegada de polícia, Ministério Público e magistratura:
— Acabei me tornando magistrada antes de concluir os demais. Foi o que veio primeiro. Não tinha isso como um sonho. Queria um trabalho que pudesse ajudar a sociedade de alguma forma, que prestasse atenção no ser humano. Hoje me sinto absolutamente vocacionada para ser juíza — afirma.
O novo cargo vai exigir que Renata passe a viver de segunda a sexta-feira em Brasília, longe dos filhos, dois adolescentes: uma de 14 anos e um de 15 anos. Além do desafio de ficar mais distante da família, assume a entidade em momento de intensa polarização política do país e que decisões do Judiciário têm sido frequentemente questionadas e discutidas:
— Tenho consciência que o desafio é grande, mas já fui testada no período da vice-presidência (da AMB). Fui eleita com 80% dos votos do Brasil todo. Penso que os magistrados entenderam que sou qualificada para enfrentar com responsabilidade esse momento.
Sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro na terça-feira, o pacote anticrime tem pontos contestados pela AMB. Segundo Renata, há itens que geram "alteração muito grande dentro da estrutura do Judiciário", entre eles a necessidade da criação do juiz de garantias. Conforme o texto, um magistrado deverá conduzir a investigação criminal, tomando medidas necessárias para o andamento do caso, mas o recebimento da denúncia e a sentença ficarão a cargo de outro juiz.
— Hoje temos mais de 50% das comarcas com um único juiz. Mudanças como essa precisam ser adequadas à realidade da organização judiciária dos Estados — pontua.
Em entrevista à Rádio Gaúcha na quinta-feira, Renata afirmou que a mudança gera insegurança jurídica e aumenta despesas.
— Neste momento, não vejo nenhuma vantagem. É como se você dissesse que todos os juízes que julgaram até o momento tivessem feito de forma ilegal ou incorreta — opinou.