Os mercadores de armas estão animados. Dois decretos assinados por Jair Bolsonaro neste ano — um facilitando o registro de armas e o outro, ainda mais polêmico, ampliando a potência de calibres permitidos e o número de pessoas que têm direito a portar armamento — catalisam a euforia. A Taurus, empresa nascida há 80 anos e que domina hoje o rarefeito mercado brasileiro, está entre as potenciais beneficiadas.
Estudos feitos por lobistas do setor indicam que até 6 milhões de brasileiros estariam dispostos a adquirir uma arma, para uso em casa ou na rua. É um mercado que pode render R$ 12 bilhões e representa aumento de 10 vezes quanto ao total de armas oficialmente legalizadas por cidadãos no Brasil: 331 mil armas de defesa pessoal (pessoas físicas) registradas no Sistema Nacional de Armas (Sinarm, que controla armamento em poder da população) e 350 mil pertencentes a caçadores, atiradores e colecionadores. Outras 327 mil estão em nomes de empresas ou forças policiais.
Algumas estimativas indicam que existem hoje em território brasileiro cerca de 17,6 milhões de armas leves em circulação, a imensa maioria na ilegalidade. Os decretos presidenciais trazem esperança de aquecimento do setor, sobretudo em estados do Sul, com destaque para o RS. Os gaúchos foram os que mais se posicionam contra o Estatuto do Desarmamento, que em 2003 praticamente proibiu o porte de armas por civis, com exceção de brechas, como quem alega necessidade comprovada ou caçadores, colecionadores e atiradores esportivos.
É esse filão que empresas como a Taurus querem explorar, mas os decretos são faca de dois gumes. Por um lado, reabrem o mercado legal brasileiro, que estava virtualmente fechado em decorrência do estatuto. Por outro, a multinacional radicada em solo gaúcho sofrerá forte concorrência. Bolsonaro estimula que companhias estrangeiras vendam armamento em território brasileiro.
Durante décadas, as importações de armas foram dificultadas por série de portarias do Ministério da Defesa. Os militares enxergam armas como assunto estratégico e defendem a autonomia da indústria local, para casos de guerra. Essa ideia favoreceu duas empresas nacionais: a Taurus e a Imbel, essa segunda uma estatal especializada em vendas de armas militares.
Já foram feitas importações recentes, mas nunca em quantias que ameaçassem o virtual monopólio da Taurus. Há, agora, perspectiva inclusive de que novos fabricantes se instalem no país.
Ações chegaram a aumentar 311%
Mesmo com disputa renhida à vista, as mudanças ideológicas que perpassam o país já beneficiam a Taurus/CBC (fábrica de munições que assumiu o controle da Taurus em 2014). No segundo semestre de 2018, com a perspectiva de vitória de Bolsonaro, o valor das ações ordinárias da Taurus (com direito a voto nas assembleias da empresa) passou de R$ 1,85 (em 15 de agosto, um dia antes do início da campanha eleitoral) para R$ 7,60 (um dia antes do pleito de 7 de outubro). O aumento foi de 311% no período. Na sexta-feira, estava em R$ 3,57.
Logo após as eleições, os valores caíram, pela perspectiva de abertura de mercado das armas a estrangeiras. Em janeiro, as vendas da Taurus foram aquém da expectativa, porque o decreto que ampliou posse de armas foi considerado "tímido" pela indústria bélica.
Veio então o decreto assinado no início de maio por Bolsonaro — e o mercado armamentista brasileiro entrou em ebulição. Com o anúncio de que a população poderia ter acesso simplificado a um fuzil (bastando não ter antecedentes criminais e justificar necessidade da arma), a Taurus comemorou possível salto no seu modelo T4, fuzil calibre 5.56 mm vendido até hoje só no mercado internacional ou para colecionadores brasileiros. A empresa afirmou ter fila de 2 mil pedidos para compra dessa arma longa.
— O decreto é um marco neste segmento. Vai aumentar de forma relevante a procura por armas de fogo pelos caçadores, atiradores e colecionadores e cidadãos de bem para sua legítima defesa e da propriedade — celebra o presidente da Taurus, Salesio Nuhs, que ingressou na empresa em 2016 após 27 anos trabalhando na CBC.
A animação virou dúvida depois que Bolsonaro refez seu decreto no dia 22 e embutiu veto à venda de fuzis para cidadãos comuns. Há possibilidade de que sejam permitidos modelos de baixa energia, para moradores de áreas rurais, o que incluiria o .40 da Taurus. Com a restrição, a reação do mercado foi pessimista. Logo depois do anúncio das mudanças, os papéis preferenciais da Taurus caíram 6,25% e os ordinários, 3,26%, na bolsa de São Paulo.
A cotação seguiu em queda na sexta-feira (24), de 3,3% nos papéis ordinários (com direito à voto) e 3,08% nos preferenciais (sem voto). Mesmo com veto à venda generalizada de fuzis, os dois decretos presidenciais abriram todo um mercado para milhões de armas de calibres outrora restritos, como o .40, .44, .45 e Magnum .357.
O decreto que facilita a compra de armas pode ser "a cereja do bolo" para a Taurus, admite Nuhs. A multinacional emprega mais de 1,8 mil pessoas e exporta para mais de 85 países. A companhia é líder mundial na fabricação de revólveres — informação confirmada pelo grupo de pesquisas Small Arms Survey, do Instituto de Estudos Internacionais de Genebra, Suíça — e uma das maiores produtoras de pistolas do mundo.
É também a quarta marca mais vendida no exigente mercado dos EUA. Além de armas curtas (revólveres e pistolas), fabrica submetralhadoras, fuzis, carabinas, rifles e espingardas, para os mercados militar, policial e civil.
A pistola G2c, produzida em São Leopoldo, é a mais vendida nos Estados Unidos, de acordo com Nuhs. No mundo, são 6 milhões de unidades comercializadas.
A concorrência no lobby armamentista
Em meio à ressurreição do mercado de armas e munições brasileiro, a Taurus, pela expertise e por ter fábrica no Brasil, larga com ampla vantagem. Vendedores dos equipamentos e parlamentares da bancada da bala consultados por GaúchaZH dizem que, a curto prazo, essa empresa será a grande beneficiada pela quebra de rigidez na legislação sobre armamento. O próprio presidente da Taurus, Salesio Nuhs, admite isso.
— O consumidor brasileiro quer receber sua compra o mais rápido possível. Qual empresa entregará uma arma no Brasil imediatamente? A Taurus entrega imediatamente após o cumprimento das exigências legais. Oferece uma rede de assistência técnica treinada em todo o território nacional, uma equipe de instrutores credenciados e peças de reposição — exemplifica o presidente Nuhs.
O empresário se refere ao fato de que a Taurus fabrica 4 mil armas por dia, 85% vendidas no Exterior (produzidas no RS e nos EUA). Agora, essa balança de vendas pode se inclinar mais para o mercado brasileiro.
Mas o executivo sabe que, a médio e longo prazo, a concorrência externa será feroz. A disputa entre fabricantes nacionais e estrangeiros tem representantes na bancada da bala, muitos dos quais receberam doações da indústria armamentista.
Um dos filhos do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), é defensor declarado da abertura do mercado brasileiro a fabricantes do Exterior e pediu CPI para investigar defeitos em armas produzidas pela Taurus. Ele desfilou com uma Glock (da Áustria), uma das maiores concorrentes da empresa brasileira. Outro filho do chefe do Executivo, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), apresentou projeto de lei que facilita a vinda ao Brasil de empresas de armas e munições estrangeiras.
Já no front da priorização das nacionais, Taurus à frente, está outro peso-pesado da bancada da bala, o deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF). O ministro-chefe da Casa Civil, o gaúcho Onyx Lorenzoni (DEM-RS), por sua vez, recebeu R$ 310 mil da Taurus em três eleições consecutivas para deputado. Mesmo assim, declara-se favorável à abertura deste mercado a indústrias estrangeiras.
São divergências estratégico-conceituais em meio a uma causa comum, a das armas — não por coincidência, toda a bancada da bala é um dos pilares da eleição de Jair Bolsonaro.
Dívida de quase R$ 1 bi e problemas na Justiça
Apesar de ter prejuízo líquido de R$ 59 milhões no ano passado, a Taurus obteve no primeiro trimestre de 2019 receita operacional líquida de R$ 252 milhões e lucro líquido de R$ 4 milhões, números bem melhores que do mesmo período em 2018. Os resultados podem ser consequências positivas dos movimentos favoráveis às armas emitidos pelo governo federal.
O problema é que a dívida histórica da empresa é de R$ 835 milhões. Os maiores credores são bancos do Brasil, dos Estados Unidos e da China. Uma renegociação possibilitou que o débito seja parcelado nos próximos cinco anos.
Para driblar as dívidas, a Taurus colocou novas ações no mercado e pôs à venda um terreno em Porto Alegre e também uma fábrica de capacetes no Paraná. Metade do que for captado irá para os credores. A expectativa, segundo o presidente Salesio Nuhs, é obter R$ 300 milhões este ano com os dois movimentos.
No quesito técnico, a Taurus também tem sido alvo de críticas — muitas alimentadas pela concorrência. Policiais alinham histórico de pistolas defeituosas que travam. Algumas teriam provocado acidentes fatais, tanto que foram registrados problemas em armamentos em 19 Estados, segundo pesquisa feita pelo Ministério Público Federal. Em certas regiões, como no Distrito Federal, houve determinação de recolhimento de armas defeituosas. Nuhs assegura que os problemas com armas têm sido corrigidos.
Outra dor-de-cabeça recente é o fato de dois ex-executivos da Taurus terem sido denunciados pelo MPF pela venda, em 2013, de 8 mil armas para o governo do Djibuti. O armamento teria ido parar nas mãos de guerrilheiros no Iêmen. O caso ainda não tem decisão judicial.
Nuhs lembra que a empresa não foi processada, apenas os ex-diretores, mas ressalta que toda exportação — inclusive aquela para Djibuti — passa pelo crivo do Itamaraty e Ministério da Defesa. O comprador de armas também veio ao Brasil e passou pela Polícia Federal.
— Se os executivos da Taurus foram enganados, o governo também foi enganado — resume.