Ilustração: Edu Oliveira/Agência RBS
*J. J. Camargo é cirurgião e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórida
A julgar pelo comportamento amistoso e solidário das crianças, o racismo é uma doença adquirida. A observação dos pirralhos, agrupados por doenças debilitantes, revela que as diferenças de cor da pele provocam, no máximo, alguma curiosidade dos pequenos no início da relação, que, logo depois, é absorvida com naturalidade.
Saindo da ala de pediatria e mergulhando no mundo dos adultos, eclodem as diferenças e os preconceitos, a nos demonstrar que nascemos bons e puros, mas, quando decidimos piorar, não paramos mais.
De Wellinton, a família aparentemente desistira, raramente aparecia alguém para saber como estava, e as notícias ruins serviam apenas para afugentar um tio pouco interessado. A resposta inicial à quimioterapia tinha sido modesta, perdera peso e exibia uma careca lustrosa e preta que contrastava com dentes muito brancos em um sorriso escasseado pela angústia de não entender o porquê de tudo errado aos oito anos.
O menino compartilhava o quarto com Renato, um alemãozinho de nove anos, com olhos muito azuis, o mesmo tipo de leucemia, e que, mais de uma vez, foi visto chorando desesperado quando mechas de cabelo loiro se embrenhavam na fronha ao amanhecer. A responsável pela internação tinha sido uma tia que assumira a guarda do menino quando a mãe internou por overdose de crack. Como a tia trabalhava fora e tinha filhos para cuidar, também raramente aparecia.
Assim, os dois unidos por doença e abandono, descobriram-se amigos. Não tendo quem os cuidasse, cuidavam-se. Dividiam também a escassez de brinquedos, com exceção de Xisto, um cachorro de pelúcia com uma cara estranha porque perdera um dos botões escuros que representavam os olhos. Do caolho horroroso, Renato não abria mão. Nos intervalos da quimioterapia, quando os vômitos cessavam, era possível vê-los na sala de recreação, mas, em geral, ficavam no quarto, conversavam muito e, às vezes, riam. Nunca se soube do quê.
Numa fase de queda máxima da imunidade, depois de uma dose alta do tratamento, Renato começou a ter febre e calafrios e foi levado às pressas para a terapia intensiva. O Xisto ficou para trás, ao lado do travesseiro. Passaram-se os dias e Wellinton, sempre abraçado ao cãozinho, era visto pelos corredores como um zumbi. Todos temiam que ele perguntasse pelo Renato, mas parece que ele intuiu que era melhor não.
Com a sua doença finalmente em remissão, o tio foi comunicado, e começaram os preparativos para a alta. Um mutirão de enfermeiras e médicos renovou o guarda-roupa de Wellinton, que agora tinha um sorriso triste de dentes lindos, e partiu rodeado de primos que brincavam com a sua careca, enquanto ele exibia sua mochila nova e colorida. Que não fechava completamente, porque, da tampa superior emergia a cara disforme de Xisto. Um cãozinho feio, mas com mais sorte de afeto do que muita criança pobre.
Palavra de médico
J. J. Camargo: Dois amigos
Nascemos bons e puros, e é no mundo dos adultos onde eclodem diferenças e preconceitos
GZH faz parte do The Trust Project
- Mais sobre: