*J.J. Camargo é cirurgião torácico e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia e presidente da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina (ASRM)
Tudo sugeria uma tarde normal de consultório com as doenças monótonas penduradas em pessoas angustiadas naquele turbilhão de sentimentos de quem se descobriu ameaçado e, pleno de susto, incerteza, medo e esperança, bateu à porta. De permeio, algumas reconsultas, velhos amigos, abraços demorados e agradecidos, comentários generosos e, afinal, o anúncio da última consulta. Um mulato de baixa estatura, um cavanhaque indefinido e uma cara boa dessas que abrem portas e resumem explicações.
Quando retirou as radiografias da sacola plástica, caiu um punhado de fitas do Senhor do Bonfim, denunciando a procedência confirmada pelo sotaque: "Meu doutor, me acuda, que até agora o Senhor do Bonfim era a minha única esperança e, vige!, cometi a heresia de deixar cair a minha maior devoção".
No alto da ficha o nome sonoro, DAMARIO DACRUZ, e, na profissão, artista. Quando quis saber qual a sua arte, ele foi seco: "poeta".
E assim descobri este artista nato, que, apesar do enorme talento, é muito pouco conhecido fora da Bahia. Mais um desses gênios desperdiçados pela humildade da origem, na imensidão continental do país. As nossas conversas nesta, e nas consultas seguintes, foram recheadas da sua poesia rica, desconcertante, encantadora.
Fumante pesado de uma vida inteira, trazia pregado no pulmão direito um grande tumor, com cara de poucos amigos e nenhum pendor poético. A localização deste, exigindo a retirada do pulmão inteiro, e a presença de enfisema que reduzia a reserva respiratória, tornavam impraticável a cirurgia, a menos que a quimioterapia lograsse uma redução significativa da lesão. Isso explicado, perguntei se estava muito assustado e se queria perguntar mais alguma coisa. Na resposta, um dos seus poemas rápidos: "Adoecer é muito deprimente Dr., mas eu sempre acreditei que nenhum dia é triste! Nós é que chovemos na hora errada".
Prometeu que faria todo o recomendado e voltaria para conferir a melhor resposta terapêutica possível. Combinei isso, mais querendo do que acreditando.
Partiu carregando o mesmo fôlego curto, mas uma expectativa nova, e da porta anunciou: "Volto pra Bahia com outro ânimo, ainda que a luz no túnel possa ser apenas os nossos olhos brilhando" mas vou encarar esta parada porque "Cada pássaro sabe a rota do retorno. Cada pássaro sabe a rota de si. Cada pássaro, na rota, sabe-se pássaro".
Nas consultas seguintes havia uma tristeza, própria de quem descobriu que é impossível manter o astral elevado com a degradação física evidente. Passamos a falar de outras coisas na medida em que a realidade parecia intragável. Eu querendo muito que ele vivesse, e ele desesperado de medo de que eu deixasse de acreditar. Disposto a viver de qualquer jeito, perguntou se havia algum projeto de pesquisa do qual pudesse participar. Afinal, as coisas planejadas e não cumpridas cobravam essa ousadia, pois, segundo ele: "Entardece cedo o dia quem não ousa em clara manhã".
Porque a quimioterapia não funcionou ou porque o Senhor do Bonfim se sentiu ofendido com o manejo descuidado, depois de uns meses, o Damário morreu arfando de tristeza e dor. A última conversa com a filha teve mais soluços do que palavras e, na despedida, a poesia que era o pedido final do pai:
TODO O RISCO
A possibilidade
de arriscar é
que nos faz homens.
Vôo perfeito
No espaço que criamos.
Ninguém decide
sobre os passos
que evitamos.
Certeza que não somos pássaros
e que voamos.
Tristeza, de que não vamos
por medo dos caminhos.
Os poetas deviam ser proibidos de morrer. A previsibilidade enfadonha da morte não combina com o gênio criativo deles
Palavra de médico
J.J. Camargo: A poesia que restou
A previsibilidade da morte é algo que não combina com a genialidade dos poetas
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