Ilustração: Edu Oliveira
*J.J. Camargo é cirurgião torácico e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia e presidente da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina (ASRM)
Estamos condicionados a eleger nossos heróis pelo tamanho de suas proezas, essas que os tornam inalcançáveis aos nossos olhos modestos. Rodrigo Díaz de Vivar, chamado El Cid, foi um nobre guerreiro castelhano que viveu no século 10, época em que a Espanha estava dividida entre reinos rivais de cristãos e mouros.
Das muitas histórias que o transformaram em lenda, a mais conhecida é a de ter sido, por ordem de sua mulher, colocado amarrado no dorso de seu corcel, depois de morto, para capitanear seu exército que desbaratou uma legião de invasores muçulmanos que fugiram apavorados porque estavam convencidos que o haviam assassinado na penúltima batalha.
Entretanto, uma história quase desconhecida marcou para mim o caráter desse herói de tantas guerras: depois de um desentendimento grave com o seu rei, foi enviado ao desterro e, quando deixava a Espanha, encontrou, no caminho das montanhas, um mendigo leproso e cego, que ao ouvir alguém se aproximando, gemeu:
- Água, por favor, água!
Nosso herói apeou e lhe deu o seu cantil para que bebesse. Saciada a sede, o pobre homem lhe devolveu, dizendo:
- Obrigado, El Cid.
E ele perguntou:
- Como sabes quem sou, se pareces ser cego?
E ele respondeu:
- Porque só há um homem em toda a Espanha capaz de afrontar um rei e dar de beber a um mendigo do seu próprio cantil.
Neste mês de agosto passado, comemoramos o centenário de nascimento de Rubens Maciel, um ícone da medicina gaúcha e brasileira. As homenagens se repetiram e em todas foram exaltadas as suas qualidades intelectuais do orador memorável, inovador em muitas áreas, especialmente a da cardiologia, o criador do organismo que rege os cursos de residência e pós-graduação em Medicina, o líder e idealizador de um modelo original de gestão que, implantado no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, tornou-se um modelo admirado em todo o país.
Não tive o privilégio de conviver com o professor, mas, depois de duas sessões de homenagens, deparei encantado com uma história contada por seu primogênito no agradecimento final. Estava o professor com seus dois filhos numa livraria da 5ª Avenida em New York quando decidiu subir ao mezanino em busca de algum título específico, e os jovens ficaram no térreo, deslumbrados com as novidades literárias.
De repente, entrou um sem teto e se dirigiu a uma estante de livros usados. Escolheu um livro, contou as moedas, descobriu que não alcançavam, selecionou outro, repetiu a operação e, desiludido pela escassez de dinheiro, retirou-se cabisbaixo.
Quando os jovens relataram esse episódio pitoresco ao professor, tiveram de enfrentar sua enérgica reprimenda porque, na opinião dele, faltara-lhes a sensibilidade de perceber que este homem não queria ter mais dinheiro para beber ou para fumar ou para usar drogas. Ele estava disposto a gastar o último vintém, que talvez lhe fizesse falta na hora da comida, simplesmente para ler.
Então eles assistiram estupefatos ao professor correr para a rua na expectativa desesperada de que o mendigo ainda estivesse por perto.
E depois voltar acabrunhado para o hotel porque aquela fome que ele lamentava tanto não tinha conseguido saciar.
Estou convencido que, mais do que as façanhas, o que distingue esses homens especiais está na grandeza dos pequenos gestos, esses que até seríamos capazes de reproduzir, mas nem percebemos a oportunidade passando.
Palavra de médico
J.J. Camargo: A grandeza dos pequenos gestos
Nem sempre heróis são tão inalcançáveis como guerreiros históricos
GZH faz parte do The Trust Project
- Mais sobre: