*J.J. Camargo é cirurgião torácico e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia e presidente da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina (ASRM)
Existem muitos traços do caráter que definem as pessoas, e deviam ser utilizados com mais rigor pelos que estão interessados em identificar amigos ou parceiros confiáveis.
Assim como a demora para rir delata instantaneamente o obtuso, a incapacidade de reconhecimento aponta para uma pobreza de alma absolutamente irrecuperável.
Considerando-se que sempre alguém nos estendeu a mão em algum momento ou circunstância desfavorável, é impossível que uma pessoa de coração limpo não tenha ninguém a quem agradecer.
Como a ingratidão e a inveja são filhas da mesma ninhada e existem indícios de que a inveja nasceu antes, todo mal agradecido é invejoso, e o ranço permanente é fruto de um humor bilioso, de quem nunca encontra virtudes alheias e, se as encontrasse, não saberia o que fazer com elas.
Quem ajuda os outros porque se sente feliz fazendo isso, já está gratificado pelo exercício do bem e não depende da opinião do ajudado para se sentir mais ou menos recompensado. As pessoas normais são assim e se sentem bem fazendo o bem, sem a necessidade de ganhos secundários. Na contrapartida, ninguém pode negar que a ingratidão é uma das formas de agressão mais contundentes e inesquecíveis.
Uma pena que não se possa ensinar gratidão, porque o mundo seria mais leve. Entretanto, este é um sentimento com o qual nascemos, e, prisioneiros dele, vivemos assim com naturalidade e doçura, ou não nascemos, e nunca haverá nada que se possa ser feito para mudar a triste sina.
Como quase tudo, o exercício da gratidão começa em casa, no entendimento que devemos ser reconhecidos ao que os nossos pais fizeram por nós. Dizer-se que os pais têm obrigações perenes com os filhos é apenas parte de um pacto de dualidade, que exige, como contraponto, a retribuição. Quando a relação é saudável e amorosa, esse retorno é espontâneo e afetivo, sem imposições ou cobranças, mas alimentado pelo desejo incontrolável de manter ativo um círculo virtuoso de carinho que nos alavanca nas horas difíceis e reparte alegrias nas conquistas.
Quando essa relação familiar é tumultuada, em geral existe culpa dos dois lados, mas nunca cometam a ingenuidade de confiar em pretensos amigos que são assumidamente maus filhos, porque é muito remota a possibilidade de que alguém, mau com os seus, possa ser um amigo generoso com estranhos.
Enquanto isso na academia...
No sábado passado, a ASRM recebeu Antonio Nardi, professor titular de psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que proferiu palestra sobre suicídio.
Chamou a atenção que o gesto, definido como o ato voluntário de se matar, pode significar inúmeras coisas para diferentes pessoas: tragédia, desespero, irritação, mistério, erro, vergonha, pedido de ajuda, alívio, heroísmo, covardia, últimas palavras, protesto etc. Mas todos esses significados são muito pessoais e mudam conforme o momento.
Uma silenciosa catástrofe mundial, o suicídio é ainda um grande tabu, cercado de preconceitos e ideias equivocadas. Ocorre com uma frequência impressionante, registrando-se cerca de 1,8 suicídio por hora em todo o mundo.
A maioria dos suicídios não é registrada devido a uma tentativa de médicos, legistas e até policiais de não aumentar o sofrimento da família. O luto, a vergonha, a negação e o estigma são sentimentos frequentes.
As tentativas são oito a 20 vezes mais comuns do que o suicídio propriamente dito. São mais frequentes entre jovens (200 tentativas por suicídio) do que em pessoas com mais de 65 anos (quatro tentativas por suicídio).
Segundo o IBGE, a taxa de suicídio no Brasil gira em torno de 5/100 mil habitantes. A Região Sul apresenta maior taxa, em torno de 8/100mil habitantes, e o Norte, a menor, com 4/100 mil habitantes.
Os homens se suicidam quatro vezes mais do que as mulheres, apesar de as mulheres tentaram três vezes mais. Talvez porque elas utilizam meios menos violentos e se preocupem mais com métodos que possam desfigurá-las.
Algumas profissões apresentam um risco maior: policiais, médicos, escritores.
O impacto de um suicídio em uma família é sempre devastador. Algumas se desfazem devido à culpa e ao remorso. Outras se unem ainda mais, tentando dar suporte para diminuir a dor e o luto. Outras ficam em silêncio, como se nada tivesse acontecido, só uma morte acidental.
O suicida deixa para a família uma sensação de abandono, culpa, tristeza por não ter outra chance para ajudar, vergonha, egoísmo e pena por não ter sido possível dizer "adeus".
A associação entre depressão grave e suicídio têm alertado para a necessidade de um tratamento efetivo e rápido. Como as drogas antidepressivas são de ação lenta, em geral requerendo duas a três semanas para agir, tem havido o emprego crescente da eletroconvulsoterapia (eletrochoque), extremamente eficiente nestes casos.
O professor Elis Busnelo, comentarista oficial como psiquiatra membro da ASRM, festejou o reconhecimento da eletroconvulsoterapia como um tratamento adequado.
As reuniões da ASRM ocorrem às 10h do último sábado do mês, na sede do Cremers, na Avenida Princesa Isabel, 921, e são abertas ao público.
Palavra de médico
J.J. Camargo: Ingratidão, a triste sina
Ninguém pode negar que a ingratidão é uma das mais contundentes e inesquecíveis formas de agressão
GZH faz parte do The Trust Project
- Mais sobre: