*J.J. Camargo é cirurgião torácico e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia
Numa dessas escolas de medicina que pipocam pelo interior do país, a cerimônia de formatura plagiava bem todas as outras. Havia empolgação, sensação de dever cumprido, alegria genuína, abraços demorados, confissões soluçadas e, como sempre, bijuterias, muitas delas.
Os estudantes representavam a mescla nacional mais perfeita, numa invejável conjunção de gostos, estilos e sotaques. Esses, tantos e tão variados, que enlouqueceriam qualquer estrangeiro que resolvesse desbravar os caminhos sinuosos da nossa língua mãe.
Tudo correu dentro do usual, incluindo a moda contagiosa e deplorável dos gritos, buzinas e apitos, e se não fosse o inesperado, tudo teria sido corriqueiro e sem graça, e nem haveria razão para esta crônica. Mas houve.
Dentro da programação, todos se dirigiram a uma igrejinha simpática, num bairro pobre, onde haveria uma missa.
O padre, um jovem negro de uns 30 anos, com cara bonita, inteligente e articulado, fez um sermão irrepreensível. Referiu o quanto era difícil a profissão abraçada pelos formandos, porque exigia, antes de mais nada, que se gostasse de gente, e que ele sabia disso porque, como padre, também tinha que lidar com pessoas, e de todo tipo. Dando ênfase à convicção de que não se ensina ninguém a gostar de gente, consolou-os com uma vantagem constrangedora: aqueles que assumissem que não gostavam, podiam mudar de profissão por serem assim tão jovens!
Nesse instante, entrou pelo corredor central um miserável sem teto, bêbado, urinado nas calças e cheirando a vômito. Enquanto avançava em direção ao altar, ensaiava um discurso em que anunciava coisas desconexas sempre começando com: "Jamais," e jamais completou a frase.
O padre, como se estivesse esperando a honrosa visita, desceu do púlpito e sentou-se na escada de acesso, fazendo sinal para que o pobre homem sentasse com ele. Depois de uma relutância desconfiada, ele acedeu ao convite e a plateia passou a acompanhar um diálogo que a distância tornara inaudível. Rapidamente o clima de tensão desapareceu e, depois de uns 10 minutos de conversa, já pareciam velhos amigos.
Quando o padre lhe estendeu a mão para que levantasse, eles caminharam abraçados até a sacristia, de onde o padre voltou sozinho para dar continuidade à cerimônia.
Na saída da igreja, um grupo de formandas lamentava a intromissão daquele bêbado repulsivo que lhes maculara a festa de formatura. O acaso lhes reservara para o último dia a maior aula prática de humanismo de todo o curso, e elas nem perceberam.
Vontade de voltar lá e abraçar aquele padre!
Palavra de médico
J.J.Camargo: Gostar de gente, eis a questão
O acaso reservara para o último dia a maior aula de humanismo do curso. E elas nem perceberam
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