Por Jorge Barcellos
Doutor em Educação, autor de “O Êxtase Neoliberal” (Clube dos Autores)
Leio em GZH que a prefeitura de Porto Alegre está instalando 10 totens interativos de vigilância com quatro metros de altura ao custo de R$ 2,3 milhões. Entendi que, em caso de perigo ou assalto, devo acionar o botão de emergência para entrar em contato com o Ceic, o centro de comando integrado da Capital. Vi um desses totens coberto nas imediações do Auditório Araújo Vianna e confesso de que de imediato veio-me a lembrança dos antigos ferrolhos da infância. Sabe aquelas brincadeiras que não existem mais, porque agora as crianças ficam grudadas em celulares, aquelas em que se brincava de pega-pega, de pique-esconde? Fazia parte desse universo a definição do “ferrolho” – objeto definido previamente para servir de proteção. Interessante que a peça metálica entre a porta e o marco seja pequena, mas cheia de significados, que esteja ali na nossa infância já reconhecida como lugar de segurança. Já estava presente na Bíblia: “Não há ferrolhos nem portas que se fechem diante de tua voz. Não há doenças nem culpa que fiquem de pé diante de nós”. No imaginário, clamamos por um lugar seguro.
Os totens da prefeitura são nosso ferrolho moderno. Chantal Mouffe, em El Poder de los Afectos en la Política (Siglo XXI), afirma que hoje vivemos as consequências sociais das crises climática e sanitária. A pandemia gerou afetos ligados a uma forte demanda de segurança e proteção. Esse movimento repete, de forma diferente, o que aconteceu nos anos 1930 com o avanço do capital, que, ao readaptar a economia às necessidades sociais, levou tanto ao New Deal de Roosevelt como ao fascismo e ao estalinismo, tese de Karl Polanyi em A Grande Transformação (Ed. Campus). Tanto Mouffe como Polanyii assinalam a autoproteção como característica emergente na sociedade. Mas o que essa necessidade significa e como se expressa?
No contexto pós-pandêmico, surge nos grupos mais pobres e de empregos precários como um sentimento de vulnerabilidade que busca por segurança e proteção. Mas, alerta Mouffe, existem formas progressistas e retrógradas de enfrentar a questão apropriadas segundo a ideologia do governante de plantão. Nesse sentido, gestores neoliberais substituem o desenvolvimento de políticas públicas por um tecnicismo que é apresentado como a melhor maneira de garantir a segurança e a proteção da comunidade – “Com tecnologias digitais inovadoras, esses governos tentam reforçar seu poder e restaurar sua legitimidade”, escreve Mouffe. Na capital gaúcha, não é exatamente o que os totens fazem? Eles abrem caminho para que gigantes da informação se instalem como agentes de políticas de segurança, que agora atingem o nível digital.
As empresas de tecnologia lucraram com o confinamento provocado pela covid-19. Agora, sua ambição é estender-se a vários domínios da sociedade. Governos delegam decisões importantes de como organizar a segurança de nossas vidas a empresas que se habilitam a receber recursos públicos. Pois eu entendo que esses recursos deveriam ir para a contratação de novos policiais, para a melhoria de seus salários e para a aquisição de novos equipamentos, sem falar dos investimentos que devem ser feitos para a redução da violência policial e a humanização do sistema de encarceramento. O problema, diz Mouffe, é que as medidas integram um processo mais amplo de controle digital da vida social, que já se faz presente em outros espaços, como na recente instalação do sistema free flow de pedágio. Trata-se de formas pós-democráticas de tecnoautoritarismo.
Trata-se também, por outro lado, da ideologia do solucionismo digital promovida pelo Vale do Silício e criticada por Evgeny Morozov em Para Salvar Todo, Haga Clic Aquí (Ed. Katz), cujo mote é que todos os problemas, incluindo os políticos, hoje, têm soluções tecnológico-digitais. Para esse autor, o perigo está em simplificar as soluções dos problemas para obter resultados imediatos, o que não permite examinar os projetos de reforma mais amplos de que fazem parte. As medidas imediatistas têm o efeito de ocultar a luta política, no caso da segurança, por mais policiamento ostensivo e redução das desigualdades sociais. É uma tentativa de dizer que as diferenças entre políticas de esquerda e direita no combate à violência não existem mais, o que é errado: é preciso que se diga que tais práticas são neoliberais, pois fazem parte do reforço do capitalismo digital, sendo sua proposta de solução para a crise de acumulação, que nada mais faz do que digitalizar os diversos âmbitos sociais (segurança, saúde, educação) para reduzir custos de produção. A segurança é o novo campo de oportunidades.
Não tenho dúvida de que a atualização do nosso ferrolho da infância não vai resolver os problemas de violência do atual estágio do capitalismo. Esse instrumento é, isso sim, outra forma pós-política digital representativa do atraso na aplicação de reais políticas de segurança. Byung-Chul Han, em Infocracia (Ed. Vozes), afirma que, na era do capitalismo de informação, o acesso a informações de vigilância é mais importante do que a posse dos meios de produção. Pois os totens espalhados por Porto Alegre seguem o espírito de 1984, de George Orwell: querem nos domesticar, nos tornar dóceis a uma visão de mundo em que a técnica substitui os homens, as políticas públicas e a democracia, numa espécie de panóptico digital urbano. O ferrolho original, ao menos, era mais honesto em sua proposta.