Por Flávio Kiefer
Professor, mestre em arquitetura (UFRGS)
O planejamento de uma cidade é elaborado por profissionais de muitos campos de atuação e, idealmente, aprovado pela população através de seus representantes. Mas é a arquitetura que vai lhe dar uma ou outra forma, que vai lhe tornar mais ou menos aprazível, bela e funcional. Porém, os conceitos dessa arte, entre nós, são pouco conhecidos. Assim, no momento em que operações urbanas de envergadura estão sendo programadas para o Centro Histórico e o 4º Distrito, penso ser importante destacar pontos de discussão do fazer arquitetônico. Há muitos modos de fazer arquitetura e, por consequência, cidades.
A palavra rearquitetura, mesmo entre os profissionais da arquitetura, é pouco conhecida. Começou a ser usada no final do século passado entre arquitetos, principalmente no sul do Brasil, preocupados com a proteção do patrimônio construído de valor histórico. O termo passou a designar trabalhos especiais que deixavam de se enquadrar na categoria de restauração em seu sentido estrito. Ou, dizendo de outra forma, em situações em que a restauração e a conservação propriamente dita não bastavam para restituir ao imóvel tombado o seu valor de uso –, pois a maneira mais eficiente de garantir a permanência do patrimônio é devolver sua utilidade à sociedade. Sabemos que, sem serventia, abandonados pelo interesse cotidiano, os imóveis se deterioram.
O que diferencia o restauro da rearquitetura é que o primeiro não admite a adição criativa, individual ou social, sobre um bem patrimonial. O que rege no projeto de restauro é o cuidado com a permanência de valores estéticos e espaciais originais. É justamente nos casos em que há a necessidade de chamar um novo arquiteto para assumir a autoria da solução de problemas contemporâneos como forma de reanimar um prédio histórico condenado à obsolescência que a rearquitetura é a solução. Solução através do diálogo entre diferentes autores, de distintas épocas, sobre o mesmo objeto arquitetônico.
Aqui há uma complementação da autoria, o novo arquiteto estabelece uma conversa com o primeiro e com ele se põe de acordo, sempre como representante da comunidade interessada no bem patrimonial. Ao arquiteto tardio cabe a leitura atenta e sensível do que foi deixado pelos antecessores, já que é dele a responsabilidade pela conciliação de interesses pretéritos e atuais. É preciso haver muita admiração e respeito pela obra anterior para que se possa encontrar o bom caminho da continuidade.
Muitos ainda chamam essa atividade de reforma, mas a palavra não cabe. A reforma pressupõe a liberdade de apagamento da autoria anterior, o importante nela é o máximo reaproveitamento material que possa ser útil ao novo projeto. Pode ser o esqueleto estrutural, suas paredes, esquadrias e outros elementos. Há nessa atividade uma grande economia de meios: algo novo é construído a partir do que já existia. Em seu sentido ambiental, é uma atividade importante e deveria ser mais valorizada. Outra parecida é retrofit, ou a atualização funcional e tecnológica do edifício sem a preocupação do restauro e sem a agressividade da reforma. Saber distinguir entre restauro, rearquitetura, reforma ou retrofit é fator muito importante para que se tome a decisão correta em cada caso. Infelizmente, essas formas de abordar o patrimônio ainda não estão sedimentadas com clareza na nossa sociedade, nem mesmo no meio profissional dos arquitetos.
E a cidade, o que tem a ver com isso? Passada a fantasia de reconstrução permanente das cidades, do demolir-construir, inaugurada com o sentido de ruptura ensejada pelo movimento moderno de arquitetura desde os primórdios do século 20, é preciso que novas formas de atuação sobre o território urbano tirem a hegemonia do princípio da substituição como prática habitual da arquitetura e construção. De alguma forma, esse processo já está em marcha e, por isso, é preciso falar sobre ele, criar consciência sobre consequências de uma atividade exercida de forma mais intuitiva do que científica. A bem-vinda liberdade de mudança de uso de comercial para residencial no Centro Histórico de Porto Alegre, por exemplo, precisa ser acompanhada por elaboração de critérios de qualidade antes que venha a se tornar um vale-tudo desastroso, ainda que bem intencionado e em dia com os melhores valores contemporâneos.
A verdade é que, seja por razões culturais, ambientais ou pragmáticas, temos um imenso parque de edifícios construídos que vão precisar passar por uma das quatro intervenções expostas acima. Edifícios novos sempre serão necessários e serão construídos, mas certamente deixarão de ter a preponderância e significado que têm hoje. A maioria dos países tende à estabilidade populacional ou à perda de população. A maior parte das cidades tem mais imóveis vazios do que gente sem teto, mais imóveis comerciais do que o necessário (o que vai piorar no pós-pandemia). A régua deveria deixar de ser os novos metros construídos para ser a da qualidade do reaproveitamento do já construído, de como adequar os metros existentes às necessidades contemporâneas de moradia, trabalho, comércio e indústria que cada vez mais deixam de ser atividades separadas. É disso que o mundo precisa urgentemente: otimização de recursos, economia de meios, reciclagem de edificações.