*Reginaldo Pujol Filho
Escritor, autor de Só faltou o título (Record, 2015)
Faz uns 10 anos: a Ana me tirou no amigo secreto e queria dar um livro. Consultou a Carla, que sugeriu um autor português desconhecido, um tal Gonçalo M. Tavares que, dizia ela, era a minha cara. A Ana topou a aposta, me deu O Senhor Henri e desatou minha paixão pela obra do Gonçalo. Anos depois, fui aluno dele em Lisboa e em 2014 ajudei a organizar sua primeira vinda a Porto Alegre para um curso. Por que conto isso? É que tudo se deu na Palavraria, livraria que, dizem, fechará no final do ano.
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Há dias repetidamente lembro do verso do Vinícius, "é preciso inventar de novo o amor". Até que ponto nossa cidade se turvou, que parece inviável existir um espaço como a Palavraria? Penso que já tivemos a Livraria do Globo, onde hoje é uma loja de venda ansiosa de roupas em oito vezes. Penso que li sobre uma livraria em Madri viva desde 1862. Penso que as cidades que adoramos visitar e contar que visitamos têm livrarias de estimação, mesmo na eterna crise do mercado. Penso que tenho lido sobre resistência e crescimento de pequenas e independentes livrarias nos EUA, na Inglaterra, na Espanha (põe no Google "independent bookshops are making a comeback"). Aí penso em Porto Alegre, o que se passa? Ou o que não se passa? Temo que a resposta seja mais uma ode ao CEO. Bah, livraria assim no Bom Fim, tão valorizado, não dá retorno.
E aí relembro: é preciso inventar de novo o amor.
Sei que sempre alguém paga a conta, não tem almoço grátis, mas um lado meu sofre ao ver que a paixão por livros que move a Carla, o Heron e o Carlos não basta. É preciso gestão. Livrarias, futebol, política, cultura, só se fala em gestão. A vida não é mais para amadores. "É preciso lotear o nosso amor", respondeu Tom Jobim, desiludido, a Vinícius e Toquinho.
Outras odes ao CEO: que pequenas livrarias não podem competir com a Amazon ou megastores; que na Amazon tudo está a um clique; que a linda (e é mesmo) Livraria Cultura no centro do Rio tem quatro andares e centenas de milhares de títulos. Ah, mal do século 21. Realmente precisamos encontrar todos os livros num só lugar? Ter acesso instantâneo a tudo o tempo todo? É a síndrome do bufê: maravilhar-se porque tem espeto corrido, sushi, peru de Natal e comida tcheca no mesmo lugar. Não acho isso apetitoso. Acho que as grandes livrarias, em geral, são as pequenas em que, pelo cuidado e não pela abundância, posso entrar porque confio que ali haverá algo para mim. Não terei todos os livros do mundo. Mas é mais provável que na livraria pequena e cuidadosa, com espaço para novas editoras e sugestões do livreiro-curador, eu ache um livro que não esperava. Claro, alguém pode dizer: Reginaldo, são teus gostos, teu sentimentalismo, a Palavraria vai fechar. Ok.
Mas então: o que significa, não só para mim, uma livraria como ela fechar? Queria dar argumentos da moda: se uma livraria fecha, cai o preço dos imóveis da região. Uma nova livraria gera um emprego para cada 10 livros na prateleira. O índice de roubos é 37,2% menor em ruas com livrarias. Mas sabemos que não. Não é por aí. Pela lente do pragmatismo, só vamos embaçar a visão.
Livrarias independentes têm função que não aparece nos gráficos. Quando fecham, não é um negócio que faliu. É uma espiral que se rompe. A Palavraria é um centro cultural espontâneo que surge à revelia das iniciativas oficiais. Movimenta mais do que grana, mexe com pessoas que se aproximam de livros e de outras pessoas. Meu caso não é isolado. São imensuráveis os grupos, coletivos, oficinas, confrarias surgidos em 13 anos. Algo que entrega-relâmpago e Black Friday não permitem comprar.
Tão importante quanto o porquê do fim de uma Palavraria é pensar em troca de quê perdemos livrarias como ela, onde, por exemplo, o livreiro fica intrigado por não conhecer um título solicitado e quer saber mais e conversa sobre outras obras. Espaços onde a literatura se multiplica. Porque apesar do acervo enxuto, pequenas livrarias são o lugar da diversidade, da expansão do universo literário. É onde a Cia das Letras e uma editora fundada ontem têm o mesmo espaço. E se o Carlos, o Heron ou a Carla gostarem do livro sem grife e acharem que te interessa por algo mais forte que "quem comprou este livro também comprou", ele será indicado, vendido, lido. Isso ocorre cada vez menos em grandes livrarias. Claro, há vendedores-leitores dedicados em megastores, mas também há metas, jabá. Então, trocamos a Palavraria pelo quê? Antes de responder, lembro do que se passa no mercado: é como num desenho, o peixão comendo peixinhos e sendo comido pelo tubarão. Livrarias de rua foram engolidas pela "segurança, comodidade e variedade" das grandes redes. Que agora são devoradas pela segurança e comodidade de comprar de pijama as ofertas da Amazon. Aí recordo de um texto de Jorge Carrión: "Dos 46 produtos anunciados na página principal da Amazon, apenas seis são livros. De fato são os seis primeiros e mais visíveis. (...) Em uma época em que, supostamente, livrarias não geram consumo massivo, o supermercado virtual mais poderoso do mundo se apropria do prestígio livresco". O que me faz perguntar: e se a Amazon, que responde a acionistas e aos mercados, concluir que "livro não é rentável, vamos descontinuar a operação livreira"? Parece que estamos trocando a relação calorosa com o livro pela relação com um algoritmo.
Mas o mais triste é que o trio da Palavraria cansou. Não são só contas e aluguel que inviabilizam o espaço. É isso e o cansaço. Talvez o cansaço de perguntar onde está o povo que lota Flips, Flops, Flups. É um paradoxo: nos últimos anos escritores e eventos ganharam exposição, mas livreiros e livrarias desaparecem. E, se é injusto perdermos a Palavraria, também é injusto pressioná-los a seguir, terceirizar nosso quixotismo. Uma salomônica saída para essa tristeza seria um novo Quixote abraçar a livraria. Claro, os três livreiros fariam falta atrás do balcão. Mas é bonito imaginar alguém assumindo a loja, permitindo a cena inédita: Carlos, Carla e Heron sentados na livraria só para descansar, tomar um café e ver o outro lado da magia, dos encontros, da beleza, coisas que não se medem e não pagam aluguel. Seria um jeito de inventar de novo o amor.