Maria do Rosário cursava a oitava série do Ensino Fundamental no Colégio São José de Murialdo, em Porto Alegre, quando liderou um grupo de colegas à Assembleia Legislativa para reivindicar bolsas de estudos a alunos carentes. A incursão não teve êxito, mas levou os adolescentes a fundar o grêmio estudantil da escola.
Rosário foi eleita a primeira presidente, dando início à trajetória militante que fez dela sindicalista, vereadora, deputada e ministra.
Quatro décadas depois, a adolescente que batia de gabinete em gabinete pedindo ajuda parlamentar tem nove mandatos sucessivos no currículo, com 3,1 mil proposições legislativas, 56 delas transformadas em lei. O maior desejo na política, porém, ainda não foi realizado: ser prefeita de Porto Alegre.
Segunda mais jovem numa prole de sete filhos do servidor público Agílio Nunes e da dona de casa Hilda Fiorentin, Rosário nasceu em Veranópolis, na Serra. Quando tinha seis anos, a família se mudou para Porto Alegre, fixando residência na zona leste. Após cursar magistério no Instituto de Educação Flores da Cunha, onde também presidiu o grêmio, convocando passeatas e greves estudantis, passou em concursos para as redes estadual e municipal de ensino.
Quase ao mesmo tempo, filiou-se ao PCdoB e ao Cpers, unindo a atuação política à sindical. Nas reuniões da entidade, conheceu um professor de história 23 anos mais velho e de agremiação partidária distinta. Embora em lados opostos — ele no PCB e na ala mais pragmática da entidade, ela no PCdoB e no grupo mais sectário —, a paixão foi irrefreável.
— Nosso romance tinha tudo para não engrenar pelas divergências políticas e diferença de idade. O meu grupo sempre ganhava as eleições do Cpers porque fazia alianças mais amplas. Ela ficava braba mas continuava comigo — diverte-se o marido, Eliezer Pacheco, secretário de Cultura de Canoas e pai de Maria Laura, 24 anos, filha única do casal.
A cena que virou lei
Com 1,70m, esguia, a jovem de olhos claros e voz rouca logo chamou a atenção do partido e dos colegas de sindicato. A candidatura a vereadora, em 1992, foi o caminho natural, com os amigos virando madrugadas enquanto reproduziam panfletos em mimeógrafos e estampavam camisetas com serigrafias.
Abertas as urnas, Rosário havia sido a quarta mais votada, com 7.555 votos, atrás apenas de políticos tradicionais do Estado como o ex-governador Jair Soares e os vereadores João Dib e Isaac Ainhorn. Não bastasse a proeza, era a primeira parlamentar do PCdoB eleita em Porto Alegre.
Rosário chegou à Câmara carregando as bandeiras da educação, dos direitos humanos e da defesa das mulheres e crianças, principais motivações de toda a sua produção legislativa.
Certa feita, estava caminhando pela Praça Parobé quando viu um cadeirante sendo carregado no colo para dentro do ônibus. Aviltada pelo tratamento indigno, aprovou lei que garantiu acessibilidade no transporte público da Capital.
— Ela tem uma persistência muito grande e, se ela acredita na causa, vai mover o mundo para resolver. Está na essência dela essa percepção de ver o que a pessoa está vivendo e dizer: "É comigo, tenho de fazer alguma coisa"— conta o secretário da Cultura da Bahia, Bruno Monteiro, que foi assessor de Rosário por 20 anos e testemunhou a cena na praça.
Rosário deixou o PCdoB em 1994, incomodada com o centralismo decisório do partido. Assinou ficha no PT, numa migração ruidosa que gerou ressentimento nos comunistas.
Dois anos depois, foi reeleita vereadora, desta vez a maior votação da cidade, 30% à frente do segundo colocado. Não cumpriu todo o mandato, elegendo-se deputada estadual no pleito seguinte.
Na Assembleia, presidiu a Comissão de Direitos Humanos, sendo chamada com frequência pela Brigada Militar para ajudar nas negociações com presidiários ou menores infratores durante rebeliões. A atuação deu origem ao rótulo, disseminado pelos adversários, de "defensora de bandidos".
Rosário seguiu militando pela causa na Câmara dos Deputados, onde conquistou assento pela primeira vez em 2002 e atualmente cumpre o sexto mandato. Em 2011, foi nomeada ministra dos Direitos Humanos pela então presidente Dilma Rousseff, expandindo as políticas setoriais. Na posse, fez defesa enfática da Comissão da Verdade, órgão concebido para investigar os crimes do regime militar.
Os ataques se acentuaram e, assustada com a virulência dos detratores, sobretudo após os sucessivos embates com o então deputado federal Jair Bolsonaro, Rosário encomendou em 2015 um monitoramento das menções ao seu nome na imprensa e na internet. A esmagadora maioria dos comentários era negativa e apenas 3,25% aprovavam a sua conduta.
Na atual eleição, após começar a campanha identificada apenas como Maria e dizendo ter sido ministra do Brasil, e não dos Direitos Humanos, Rosário decidiu explicar a dedicação ao tema.
— Você já deve ter ouvido muitas mentiras sobre mim, principalmente quando falam em direitos humanos. Os direitos humanos são a defesa da vida, da dignidade humana, fazem parte da dimensão cristã do mundo — afirma Rosário no comercial, salientando que é autora da lei que aumenta pena para bandidos que ferem policiais.
5,8 mil quilômetros rodados
Aos 58 anos, formada em Pedagogia, com mestrado em Educação e doutorado em Ciência Política, está em sua terceira eleição à prefeitura. Foi candidata a vice na chapa de Raul Pont em 2004 e a prefeita em 2008, perdendo no segundo turno nas duas ocasiões.
Nesta última eleição, venceu o ex-ministro Miguel Rossetto numa das mais acirradas prévias do PT. Consagrada pela base do partido, superou as hostilidades da cúpula, que a considerava novata para reivindicar uma candidatura majoritária.
— Superei preconceitos. Não conheço nenhum caso na vida política no qual, durante 14 anos, algumas pessoas fiquem te tratando como alguém novo no partido — desabafou à época.
Na atual campanha, Rosário venceu resistências iniciais, mas uniu o partido e, liderando uma inédita união da esquerda, com PT, PSOL e PCdoB, participou de 216 eventos, rodando 5.799 quilômetros pela cidade entre 16 de agosto e 2 de outubro.
Mergulhada na eleição, está sem tempo para se dedicar aos pães e bolos que adora assar em casa, tampouco para tratar as buganvílias e manacás-da-serra que mantém no pátio, enquanto escuta Elis Regina.
— A gente sente falta, mas entende. Ela quer muito ser prefeita. Sempre sonhou com isso, se preparou muito, desde os tempos em que começou a militar na associação de moradores do Partenon, aos 14 anos — diz o marido.