Passado o susto, o incêndio criminoso de março até parecia ser um prenúncio de dias melhores. A casa de madeira utilizada como ponto de tráfico estava destruída. Segundo a polícia, o ataque foi promovido por uma facção que não queria rivais vendendo no bairro Vila Ipê.
Contudo, o consumo de drogas na Rua dos Quero-queros não terminou, apenas passou para o imóvel ao lado. A moradia foi tomada por usuários de drogas que perambulam pela via pública a espera da visita de um traficante. Uma rotina que se repete há anos e desespera os moradores.
O problema, admitido pela Brigada Militar e Polícia Civil, se repete em diversos bairros desde a década de 1990, quando o crack chegou na Serra. Os vizinhos das cracolândias têm medo. Eles não sabem em quem confiar. Se sentem abandonados pelos governantes e pelos órgãos de segurança. Afinal, como pode um crime tão escancarado prosseguir por tanto tempo?
Um morador da Rua dos Quero-queros decidiu arriscar. Pioneiro no bairro, ele vê o trabalho da sua vida indo fora. Cansado do sentimento de insegurança, pensa em se mudar. Mas quem compraria uma casa vizinha do tráfico?
Pioneiro: Como é morar perto de uma cracolândia?
Morador da Rua dos Quero-queros: Imagina dia e noite aquele movimento na rua, na frente de casa. São carros parando, indo e voltando. É uma ida e volta contínua. De vez em quando tem briga. Eles surram um ao outro e são (gritos de) ameaças para todo lado. Como ficam as famílias ao redor? É preocupação constante. Faz uns cinco anos que está assim.
Quantas pessoas circulam nessa casa?
Os que vendem, troca todo o dia. São funcionários, né? Nem ficam mais na casa, é na rua mesmo. Quem faz o movimento são quatro, cinco, seis, às vezes dois. São usuários e entregam também para os cabeças. Em princípio, mudou. Como a polícia está batendo mais constantemente, está mais nos finais de semana. É mais a tardinha. Época de pagamento nem se fala.
Como sabe que são drogas?
Ouço os gritos. "Hoje não tem, mas já tá chegando". Tu vê eles (sic) fumando na rua, é direto. É aquilo que aparece na televisão acontecendo em Porto Alegre e em São Paulo. E aqui em Caxias ninguém enxerga? Ou fazem vista grossa? É aquele monte de gente, e as pessoas têm medo. Os vizinhos têm medo, não sabem o que fazer. Se fala em polícia, dá problema.
Mas já aconteceu algo?
Como moro há muito tempo no bairro, eles me respeitam, principalmente os que moram por aqui. O perigo são aqueles que não conheço. Eles evitam ficar por ali quando sabem que tenho visitas. Mas, é porque tem esses que conheço desde criança. Com os que não conheço, não me arrisco a falar. Porque essa gente, por uma pedrinha, te dá um tiro. Evito, né?
Que tipos de pessoas são?
Os que ficam entregando são jovens. Mas vêm de todo o tipo, até idoso vem buscar (droga). Vem alguns de gravata, de carrão, outros de carro velho... Recentemente, baixou um pouco o nível (financeiro). Mas antes era de alta. É gente de todo lugar. Alguns (dos que vendem são) do bairro ou da rua, mas tem os de fora também. Os que compram não sei de onde vêm. É muito público diferente. Tem carro que vem de cinco a 10 vezes por dia, só o mesmo carro para comprar. Só gritam: "cinco", "três" ou "dez". Todo mundo ouve. É como vender bala para criança. São porções pequenas, enroladas no plástico, entregam na frente da gente.
E a polícia sabe?
O que vou dizer? Eles sabem que vendem drogas, mas não pegam nunca. Já bateram várias vezes. Mas só saíram (os policiais), (os traficantes) já voltam. Virou as costas, estão ali de novo. Os (policiais) não pegam nada. Está tudo escondido em algum canto. Tem um contêiner na frente da casa, ou embaixo de pedra, escondem pela rua.
Para circular na rua tem problema?
Não é que tem problema, mas as pessoas ficam com receio de vir, né? Têm medo. Por enquanto, não aconteceu nada. Um familiar meu chegou uma vez e foram lá, "Quantas? Quantas?". Qualquer um que chega na rua, eles oferecem. Chegou, eles abordam: "Quantas?".
Pensa em se mudar?
Estou pensando em ir para a praia. Vai ser difícil vender, mas estou pensando. Estou pagando meus impostos, mas ninguém vê. O governo não vê que está desvalorizando o teu bem. A tendência é ter que botar fora. Os vizinhos se perguntam, mas não dá para fazer nada. Quem tem de fazer são as autoridades.
E os vizinhos, o que fazem?
O que pode fazer é gritar na rua, ameaçar, dizer que se entrar no pátio vai dar problema, vai matar. Eles não entram nas casas, é difícil, eles respeitam um pouquinho, né? Mas, tu vai fazer o quê? Não pode andar na rua, não pode sentar na frente de casa. É complicado. Qualquer hora pode acontecer alguma coisa, começar uma confusão, uma briga. Sobra para todo mundo.
O QUE DIZEM AS AUTORIDADES
:: BM e Polícia Civil confirmam que existem diversas casas utilizadas como cracolândias em todas as regiões da cidade. A dificuldade no combate é que esses endereços são referências para os usuários de drogas, que se reúnem e aguardam por alguém que venha vender.
:: Segundo a polícia, quem vende nas cracolândias costuma ser um usuário recrutado pelos traficantes. O flagrado não costuma ficar muito tempo recolhido no sistema prisional. A perda deste "funcionário" também não afeta o traficante.
:: O comandante do 12º Batalhão de Polícia Militar, tenente-coronel Jorge Emerson Ribas, salienta que os locais são procurados e fomentados pelos usuários, e, por isso, o tráfico não cessa. O delegado Adriano Linhares aponta que o foco da Polícia Civil é encontrar quem lucra com a venda de drogas, que seriam os verdadeiros traficantes. Os policiais acham que a lei deveria ser mais rigorosa, mas apontam que as cracolândias são mais um problema de saúde do que de segurança.