Um ano e três meses após ser atacada com fogo pelo ex-companheiro, Lucilene Fonseca, 33 anos, decidiu falar sobre o caso que resultou na morte de Isabella Theodoro Martins, de oito meses. Por segurança, a mulher deixou o Rio Grande do Sul no final no ano passado, após concluir a sequência de cirurgias para repor a pele queimada. Nesta semana, ela voltou para Caxias do Sul para participar de duas audiências: uma sobre a primeira agressão que sofreu de Maykon Marcelino da Silva, 31 anos, e outra para se defender de uma suposta ação movida pela mãe de Isabella, que a acusa de participação na morte da bebê. O MP, contudo, não vê participação de Lucilene na morte da bebê e denunciou apenas Silva.
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Uma das lamentações da mulher é os filhos não estão recebendo o auxílio-reclusão em razão da prisão de Maykon da Silva. A lei determina que para os dependentes terem direito ao benefício, o último salário de contribuição do cidadão que foi preso seja menor que R$ 1.364,43 (valor que na época era de R$ 1.292,43). Em novembro de 2017, porém, Silva contribuía com um valor maior em razão da empresa da família, de impressão de sacolas.
O problema é que a separação do casal segue em tramitação no Judiciário e Lucilene perdeu acesso ao maquinário e ao sobrado em que morava no bairro Santa Lúcia. Ela afirma que até a guarda dos filhos segue em discussão.
Confira trechos da entrevista que ela concedeu ao Pioneiro:
Pioneiro: Vocês eram casados a quanto tempo?
Lucilene Fonseca: Fomos casados por oito anos. Há sete, ele recaiu pela primeira vez nas drogas. Foram muitas lutas. Ele ficava seis meses ou até um ano sem usar, mas sempre recaía. Apesar de tudo que ele usava, ele nunca havia me batido. Na primeira vez que me bateu, eu encaminhei a separação.
Qual era a dependência dele?
Era viciado em cocaína. Diziam os parentes que ele tinha começado lá pelos 13, 14 anos. Sempre tentei ajudar, a gente internava ele. Quando ele usava droga, criava essas alucinações de traição, o que nunca aconteceu. Eu tentava evitar. Larguei as limpezas, fiquei mais em casa, tentava dar segurança para ele, fomos até em um psicólogo de casal para ajudar. Mas ele ganhou o seguro (após a morte) do pai dele e teve dinheiro à vontade para comprar (cocaína), foi quando desandou. O pai dele havia morrido em julho (as agressões foram em outubro e novembro).
Por que a Isabella estava com você?
Eu era a madrinha da menina. Compramos as roupas quando a Isabella nasceu, que eram usadas, mas ajudamos. (Naquele final de semana), a mãe precisava sair e eu tinha encaminhado a separação. As minhas crianças eram bem apegadas com a Isabella, então pedi para a nenê ficar com a gente, assim ajudava os meus filhos a esquecer um pouco o fato de o pai não estar mais em casa. Pedi para a Isabella ficar até domingo, assim (a mãe) poderia viajar e descansar também. Estávamos todos dormindo, eu só tinha acordado para dar de mamar para a bebê. Era umas 23h30min, o horário que ela costumava mamar. Como havia muitas escadas, não quis deixar a Isabella sozinha e onde eu ia levava ela junto.
Como foi o ataque?
Estava na cozinha, para fazer o mamá da Isabella, quando ouvi um barulho na garagem e fui lá olhar. A bebê estava no meu colo. Ele (Maykon da Silva) estava lá. Começou a pedir perdão, dizer que não faria mais aquilo. Quando respondi que não, que já havia cansado, ele jogou o álcool em mim. Corri para a garagem e gritei por socorro. Só que ele riscou o fósforo e jogou nas minhas costas. Começou a pegar fogo em tudo. Tentei apagar o fogo da nenê, mas quanto mais me movimentava, mais incendiava. Larguei a nenê no chão porque pensei em tirar o pijama e usar para abafar, mas não tinha mais pijama. Foi quando a vizinha chegou. Ela conseguiu nos cobrir para abafar o fogo. Logo já tinha mais vizinhos para nos ajudar. Lembro que gritei para cuidarem dos meus filhos e nos levaram para o hospital. Lá me pediram como foi (o ataque) e depois me sedaram. Foram 47 dias em coma, e depois todo o processo de recuperação.
Ele estava alterado?
No momento em que deparei com ele, acredito que ele tinha usado muito (cocaína). O que diziam é que desde o dia 23 de outubro (quando aconteceu a primeira agressão), ele não comia e nem dormia, só bebia e usava (drogas). Ele morava com a mãe dele, a algumas quadras de distância.
Como foi no dia da primeira agressão?
No dia que estava com o olho roxo, a polícia foi até lá em casa, mas me orientou a procurar a delegacia da Mulher no dia seguinte. Foi o que fiz, fui bem atendida, fiz o corpo de delito e registrei a medida protetiva (contra ele). Acho que o Fórum não conseguiu entrar em contato com ele, mas estava encaminhada. Ele devia ficar longe pelo menos 200 metros de mim. Mas a medida protetiva é um papel, muitos cumprem e muitos não. Alguns têm medo do que vai acontecer (se descumprir a ordem judicial), mas outros não estão nem aí para aquele papel. Naquele dia, 23 de outubro, eu decidi e encaminhei a separação. No dia 4 de novembro, aconteceu aquilo (o ataque com fogo).
Como foi a sua recuperação?
Tive 70% do corpo atingido por queimaduras de 3º grau. Das pernas (que não queimaram), faziam os enxertos (de pele) para pôr no resto do corpo. Nesse tempo, peguei um bactéria e os enxertos rejeitaram. Fiquei 101 dias no hospital. Depois, até agosto (de 2018), fiz cirurgias toda a semana. Era segunda e quinta no bloco cirúrgico. Como encolheu muito a pele, perdi os movimentos dos braços. Por isso, não consigo trabalhar para sustentar os meus filhos.
Por que você foi embora de Caxias?
Me mudei no final do ano (passado), como medida de segurança. Tem todo o processo dele, que está preso, mas sabe como é. E também tem a mãe da nenê, que me acusa. Também mudei para reduzir o custo de vida: em Caxias é caro e não consigo mais trabalhar.
A mãe da Isabela te culpa pelo que houve?
Ela diz que fui eu que fiz tudo isso na nenê. Não sei o que ela pensa. Ninguém me viu depois do que aconteceu. Acham que fiquei perfeita, que trabalho e que faço o que fazia antes. Não é o que aconteceu. A Isabella era minha afilhada, mas a tinha como uma filha. Ela (mãe) me manda áudio, diz que sou assassina, que tenho que pagar. Não tinha o que eu fazer pela nenê. Eu até tentei, pensei em tirar o pijama para abafar (as chamas), mas não tinha mais pijama para enrolar a nenê, tudo estava queimando. Todo mundo pensa na água (na hora de um incêndio), mas a gente estava no pátio, não tinha nada, só brita.
Você conseguiu recuperar sua rotina?
Não tem como. Perdi o movimento dos braços e não alcanço mais no alto. Eu era diarista, fazia todo serviço de casa. Hoje, dependo de uma escada e não consigo sequer estender uma roupa. Tinha uma vida, uma firma (empresa de impressão de sacolas). As crianças tinham tudo, e agora dependo de pensão (por invalidez).
CONTRAPONTO
A mãe de Isabella acredita que Lucilene utilizou sua filha como escudo contra o ex-marido e, assim, provocou a morte da bebê. Thays Ermínia Meira Teodoro, 24 anos, conta que sua vida acabou naquela dia 4 de novembro.
— Para mim, ela é mais culpada do que ele (Maykon da Silva). Foi ela que pediu para ficar com a menina (naquele final de semana). Estava sob a responsabilidade dela. Ela sabia que a situação estava ruim (com o ex-marido), então jamais deveria ter pego a filha dos outros. Não teve um pingo de decência de cuidar, usou como escudo, para se defender — disse.
Thays afirma que o Ministério Público errou ao não denunciar a Lucilene e admite que enviou áudios acusando a madrinha de Isabella.
— Não digo que ameacei, mas estou no meu direito de lembrar a ela todo dia do que fez com um inocente, um anjinho. Ela é culpada. Por que com os filhos dela não aconteceu nada? Por que não deixou a menina com os filhos dela? Ela deformou a minha filha e acabou com a minha vida — acusa a mãe.
Embora Lucilene tenha dito ao Pioneiro que já existe um processo movido por Thays, a mãe do bebê garantiu que ainda pretende acionar um advogado contra a comadre.