Ao chegar em Bento Gonçalves, em março de 2015, o major Álvaro Martinelli admitiu sua preferência:
— Gosto de estar em uma viatura, levando segurança ao rico e ao pobre, tratando de maneira igual os diferentes.
O ex-comandante do BOE de Passo Fundo estava acostumado a ser chamado para enfrentar as principais ocorrências em solo gaúcho e, por isso, tinha experiência com o crime organizado. Alguns meses depois de assumir o 3º BPAT, o major Martinelli avisaria que a Capital do Vinho precisava se preparar porque a influência das facções, que aumentavam os índices criminais da Região Metropolitana, iria subir a Serra.
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Após três anos, a BM de Bento Gonçalves vive sentimentos ambíguos: comemora a redução dos assaltos enquanto enfrenta o maior índice de homicídios da história. No mês passsado, o batalhão recebeu reforços para lançar a Operação Dissolutio.
Pioneiro: Para a BM, o que tem elevado os homicídios?
Major Álvaro Martinelli: Trabalhamos com a análise criminal de dados, utilizando a ferramenta Avante, que (pelas estatísticas) apresenta as chamadas "manchas térmicas" e mostra os locais com maior concentração (de crimes). Quase 90% das vítimas (de homicídio) possuem antecedentes criminais e/ou envolvimento com as drogas. Esses indicadores nos levam à raiz do problema em Bento Gonçalves: homicídios relacionados ao tráfico de entorpecentes. (Para reduzir as mortes), combatemos o tráfico nos bairros mais conflagrados e buscamos as armas de fogo, que são utilizadas nesses crimes. São 12 armas apreendidas (em 21 dias de operação), que é uma média bem acima do que era recolhido em um mês. Não existe qualquer local em que a BM não entre em Bento Gonçalves. Não existe toque de recolher. Não há uma dominância (criminosa). O que há são questões pontuais em alguns bairros e trabalhamos nisso, com a troca constante de informações com a Polícia Civil.
Homicídio é tido como um dos crimes mais difíceis de evitar, mas essa é a missão proposta pela BM. Como fazer?
É a repressão qualificada, atuando nestes locais de maior incidência e identificando possíveis lideranças (criminosas) e os pontos de tráfico existentes. Não nos importamos se vamos prender uma, duas, 10 ou 50 vezes o mesmo criminoso. Iremos apresentá-lo para a Justiça, para que esta dê o andamento necessário. O foco é na raiz do problema: o tráfico de drogas.
No momento de crise, a BM traz esse reforço e busca dar uma resposta à sociedade. Contudo, é preciso algo além da atuação de polícia ostensiva para conter essa onda de homicídios?
A segurança pública é composta por um sistema, que envolve questões sociais, regionais e atividades de polícia preventiva e repressiva. É uma engrenagem que envolve, inclusive, o comprometimento da comunidade. Para nós, como PMs, não cabe a interpretação do porquê um criminoso não ficou (recolhido) no (regime) fechado. Ele praticou delitos 105 vezes (como mostrou uma notícia do Pioneiro em 18 de setembro)? Iremos prendê-lo 105 vezes. Este é o nosso comprometimento. Estamos inseridos nesta comunidade e os índices criminais são uma questão pessoal para nós. Nosso policial, quando está na rua, não se sente feliz se acontece um crime. Nossa vertente é evitar que aconteça. Se não conseguimos evitar, temos de dar a resposta: prender e encaminhar para as outras instâncias que compõem a segurança pública. Fora a questão desses homicídios vinculados ao tráfico, os outros indicativos estão em queda. Só que homicídio chama atenção por envolver a vida de pessoas. São números que, ao longo dos anos, são crescentes, mas não só em Bento Gonçalves. São crescentes no Rio Grande do Sul e pelo Brasil. Com certeza, algo a mais precisa ser feito.
O que mudou em Bento Gonçalves, nos últimos anos, para esse crescimento dos homicídios?
Quando cheguei na cidade, há três anos, a população era de 100 mil habitantes. Hoje, ultrapassou os 120 mil. É uma migração muito grande de pessoas em um curto espaço de tempo. Todas essas 20 mil pessoas conseguiram uma colocação no mercado de trabalho? Conseguiram um lugar para familiares estudarem? Se a frota de veículos aumentar repentinamente no país, com certeza os acidentes vão aumentar também, porque a estrutura de estrada permanece a mesma. Há um acréscimo populacional e um momento de crise (econômica), daí surgem essas oportunidades ilícitas que são bem mais atrativas do que a formalidade do trabalho. Quase que a totalidade dos homicídios envolve pessoas que já passaram pela polícia, que já foram presas e passaram pela Justiça.
Pelos homicídios, Bento Gonçalves está no ano mais violento da sua história. O senhor concorda?
O país está numa ascendente de crime. Olhamos para outros Estados, com uma estrutura diferente, e vemos a mesma curva ascendente. É um fenômeno nacional que nos incomoda muito, porque são vidas. Por isso, volto a questionar, até que ponto é uma responsabilidade exclusiva de polícia? Segurança pública é uma engrenagem que envolve várias peças. Estamos em um recorde negativo e, temos certeza, que algo no cenário nacional precisa ser mudado. Hoje, temos uma legislação que abranda e presídios que não ressocializam. É errôneo pensar que a prisão é a solução do problema, pois, em algum momento, esse sujeito voltará à sociedade. É preciso uma reestruturação bem grande. Estamos em um país que está cultuando a violência como algo normal. Abrir um jornal e ler que foram mortas duas ou três dezenas de pessoas está se tornando algo corriqueiro. Não pode ser encarado desta maneira. E não é só o trabalho que vai resolver. É preciso educação desde a formação, na base que é o núcleo familiar, e nos educandários. Não adianta fazer textão em rede social e depois ir comprar um celular, que custa R$ 2 mil, por R$ 200 achando que fez um grande negócio. É um celular que pertenceu a alguém, que foi roubado ou furtado, e a pessoa está alimentando o crime. Precisamos falar que só existe o traficante porque existe consumidor. É um nicho de mercado. O que vemos, muitas vezes, são consumidores de classes abastadas, que têm educação superior ou médio, que estão no seio de uma família (estruturada) e que vão a uma festa e se entorpecem.
Qual a avaliação da BM sobre facções, é um fator dessa violência em Bento Gonçalves?
O termo facção se popularizou no país depois que um determinado periódico foi ao ar em horário nobre. As facções nada mais são do que bandos ou quadrilhas que se unem com uma "visão empresarial" de tirar lucro em cima de uma atividade ilícita. Cada vez que se usa o termo facção, influencia aquela criança que está lá naquele bairro que não é assistido pelo Estado. É mais interessante dizer que é da facção ou que está indo no colégio e trabalha em uma empresa? O próprio termo facção é uma maneira indireta de glamourização do crime. Essa questão de facção, hoje, virou uma franquia. Vemos em cidades pequenas, com até menos que 10 mil habitantes, um indivíduo dizer que é da facção tal. Ele nem sabe o que é. Mas, como é um termo glamorizado, surge como algo grandioso. É apenas um grupo de delinquentes com divisão de tarefas: quem vai trazer, quem vai vender, quem faz a contabilidade... Quando chegamos, há três anos, e tínhamos um índice bem menor de homicídios, avisamos que iria chegar (em Bento). Mas não é que a facção veio para determinado local. Hoje, a internet ensina a fazer essa divisão de tarefas. Essas altas taxas de desregramento social são um campo fértil (para esta criminalidade).