Faltava muito para o dia amanhecer e a família Pereira Maura já estava em movimento. Em um dos quartos da casa simples de madeira, o irmão mais velho, Vitor Henrique Pereira Modenez, 15 anos, calçava os tênis, enquanto, em outro cômodo, a mãe, Marinês Pereira, 33, vestia agasalhos no caçula, Taylor Adriano Pereira Maura, quatro anos, para protegê-lo do frio e da umidade que pairava no ar na manhã da última sexta-feira (7) na localidade de Fazenda Estrela, no interior de Vacaria, na Serra. A temperatura nem estava tão baixa se comparada ao dia anterior quando os termômetros marcaram 4ºC. Fazia 11ºC na sexta, mas a neblina que caía como um chuvisco deixava tudo mais gelado.
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Mais adiantados nos preparativos, os irmãos do meio, Vinícius Augusto Pereira Maura, 10, e Vitória Fernanda Pereira Maura, oito, já circulavam pela peça que serve de cozinha, mas que também acomoda uma cama. Nessa hora, o relógio da parede indicava 5h25min. Vinícius aproveitou os minutos que ainda restavam para tomar um copo de leite e comer uma fatia do bolo que descansava sobre a mesa. O pai, Paulo Cesar Maura, 38, já estaria com a água quente para o café sobre o fogão a lenha, mas, naquele dia, preferiu evitar a fumaça dentro da casa em função da presença da reportagem. O Pioneiro acompanhou a arrumação das crianças e fez com elas o trajeto de 1,2 quilômetro a pé pelo caminho escuro e com diversos pontos de atoleiro por entre propriedades rurais até a estrada de chão onde, costumeiramente, elas embarcam no micro-ônibus do transporte escolar.
O percurso tem sido feito desde fevereiro deste ano, depois que a família mudou de Foz do Iguaçu, no Paraná, para o município gaúcho em busca de melhores condições de vida. Desempregado, o pintor de paredes viu no posto de caseiro da propriedade em que, no passado, o pai dele havia trabalhado a oportunidade de voltar à cidade natal e de criar os filhos. Neste mesmo mês teve início o ano letivo e as dificuldades começaram a aparecer.
Mesmo com o transporte escolar ofertado pelo município, as crianças que moram em comunidades mais afastadas, como os Pereira Maura, têm de sair de casa de madrugada, enfrentando as intempéries do outono serrano e, possivelmente, do inverno que está pela frente, para poder estudar.
Além da meia hora de caminhada no breu da propriedade e por trechos de muito barro, eles amargam duas horas dentro do micro-ônibus por estradas de chão para, só então, chegar à sede da escola e dar início ao que seria a jornada deles do dia, como se já não tivessem cumprido, talvez, a parte mais exaustiva dela. O som do sinal que libera os estudantes à meia tarde é também indicativo de que a jornada de retorno, com todos os percalços da ida, está por vir.
Quando finalmente chegam de volta em casa, pelas 18h30min, estão tão cansados que, por vezes, dormem antes mesmo do banho ou jantar.
Confira o percurso feito pelas crianças para frequentar a escola em um dia
- O irmãos Taylor Adriano Pereira Maura, quatro anos, Vitória Fernanda Pereira Maura, oito, Vinícius Augusto Pereira Maura, 10, e Vitor Henrique Pereira Modenez, 15 anos acordam por volta das 5h.
- Eles se arrumam, tomam café (quando tomam) e saem de casa às 6h.
- Até o ponto onde embarcam no transporte escolar na estrada mais próxima, são 30 minutos de caminhada na escuridão, no trecho de 1,2 quilômetros de subidas e muito barro. Para fazer o trajeto, eles usam uma lanterna. As vezes, o irmão mais velho leva o pequeno nas costas. Quase sempre, Vitor carrega a mochila dele e a de Taylor.
- Ao chegar junto à estrada, eles retiram um pano que um deles carrega na mochila e limpam os calçados embarrados (alguns com furos por onde entram lama e água) antes de embarcar no transporte. Mas as roupas e meias úmidas seguirão com eles ao longo do dia.
- O percurso da casa dos Maura até a escola é de 22 quilômetros. Porém, por diversas vezes, o micro-ônibus deixa a estrada principal e acessa caminhos precários para buscar outras crianças, num total de 47 quilômetros. Na última sexta-feira, a velocidade do veículo variou entre 15 Km/h e 25 Km/h, com tempo seco e estrada empedrada. O tempo da viagem foi de 1h47min. Mas, nem sempre é assim.
- Na escola, os alunos recebem café da manhã, almoço e lanche da tarde. Com turno integral, além das disciplinas tradicionais, têm aulas de informática, dança, teatro e horticultura, onde aprendem cultivar árvores de pequenas frutas e hortaliças.
- Às 16h, o sinal indica fim das aulas. As crianças embarcam novamente no transporte escolar e iniciam a viagem de volta para casa.
- Quando os irmãos Maura chegam no ponto de desembarque, já é por volta de 18h. O sol já se pôs e o trecho até a casa é feito novamente no escuro.
- As crianças entram em casa 18h25min. Cansados, largam as mochilas e se livram dos calçados molhados e sujos. O mais velho vai para o quarto, enquanto os do meio ficam (pelo menos um pouco) no entorno do pais e o caçula coloca o bico na boca e se joga na cama que fica na sala e até serve como sofá.
Crianças acabam faltando aulas
Temendo pela saúde dos filhos, Marinês e outros pais de alunos na mesma situação acabam não mandando os alunos em dias de chuva. Teve uma semana em que os irmãos foram à aula em somente um dia.
— Quando chove ou tem muito barro ou muito frio, eu não mando. Eles não têm muita roupa, luvas, essas coisas... dá dó — disse a mãe.
Os conteúdos são recuperados com tarefas para fazer em casa, segundo os próprios estudantes. Durante o trajeto de ida para casa, no trecho entre a estrada e a moradia, eles falaram sobre as dificuldades que enfrentam para estudar.
— Além do barro e do sacrifício para ir para escola, é muuuito frio. Quando a gente chega na escola é bom e quando chega em casa é bom também — disse Vinícius.
— Tirando o barro, o frio e o tanto que a gente anda, é bom depois — reforçou Vitor.
— Cansa muito — resumiu Taylor, ainda na metade do caminho.
— A preferência nossa é de arrumar essa estrada que é bem difícil e uma segunda linha a gente está precisando para as crianças irem para escola e chegar mais cedo. É muito tempo no transporte — declarou o pai das crianças, Paulo Cesar Maura.
Escola implementou turno integral que agrada, mas dificulta
Até o ano passado, a Escola Municipal de Ensino Fundamental João Becker da Silveira, que fica na localidade vizinha de Barro Preto, a 81 quilômetros da área urbana de Vacaria, e onde as crianças da família Pereira Maura e outras 34 estão matriculadas, funcionava em dois turnos. Por alguns meses, mais perto do final de 2018, ela chegou a fazer turno único, à tarde, em função do número reduzido de estudantes. Porém, justamente em fevereiro deste ano, o ensino passou a ser em turno integral. Ou seja, os alunos são recebidos às 8h30min e liberados às 16h.
A mudança ocorreu depois de reunião com pais, prefeitura e a Promotoria Regional de Educação, com sede em Caxias do Sul, segundo a secretária de Educação de Vacaria, Dilvane Agustini. Ainda conforme a gestora, a implantação do turno integral foi determinação da Justiça a partir de recomendação da promotora Simone Martini.
A mudança agradou professores que cumprem as suas cargas horárias somente em uma escola – não precisam deslocar para outra instituição – e os pais de estudantes que moram mais próximos do educandário. Alguns alunos também gostam do turno integral porque começaram a ter aulas que não recebiam antes.
— É bem bom. A gente tem informática, dança, teatro e horticultura — disse uma aluna do 6º ano.
A escola, construída há 13 anos, tem boa estrutura e atende crianças da Educação Infantil ao 9° ano. Elas recebem café da manhã, almoço e lanche da tarde. Tem seis professores – quatro de 40 horas e dois de 20 horas. Tem ainda junto ao prédio, uma espécie de unidade de saúde que atende de 15 em 15 dias com serviço médico e odontológico. E uma horta nos fundos que ensina o cultivo de árvores de pequenas frutas e hortaliças utilizadas na merenda.
Contudo, o modelo preocupa os pais de crianças, principalmente os pequenos de quatro e cinco anos, que precisam fazer longas distâncias até a instituição. Diante disso, os pais fizeram um pedido à Secretaria de Educação para que a escola volte a operar em turno único. O pedido foi encaminhado pela Procuradoria Jurídica do município à Vara da Infância e da Juventude de Vacaria. O impasse sobre o que é melhor para as crianças – que, afinal, deve ser a preocupação de todos – aguarda, agora, por uma nova decisão do judiciário.
— Para nós também a escola integral é um momento novo. É nossa primeira escola. É uma caminhada que temos que construir junto com a comunidade escolar. Tudo que for para melhorar, principalmente para as crianças, nós estaremos fazendo — declarou Dilvane.
Segundo a secretária, caso a Justiça decida por manter o turno integral, existe a possibilidade de dividir a linha do transporte escolar de um para dois trajetos, o que diminuiria o tempo de deslocamento das crianças. Mas, essa decisão será tomada após nova discussão com os pais. Além disso, o serviço precisaria ser licitado.
A prefeitura de Vacaria informou que fará melhorias na Estrada das Nogueiras, que liga a casa da família Pereira Maura até a Estrada do Susin, na localidade de Fazenda Estrela, interior do município.