
Autocuidado, conexão, criatividade, tempo para si. Estes são alguns dos termos comuns nos relatos de mulheres que buscam por experiências imersivas voltadas exclusivamente para o público feminino. Ateliês de pintura, escrita e recorte e colagem se popularizaram recentemente em Caxias do Sul graças à compreensão cada vez maior de que ocupar o tempo livre com um hobby não é um luxo, mas uma necessidade.
O caminho, no entanto, ainda é longo. Uma pesquisa realizada em fevereiro pela Todas Group e pela Nexus – Pesquisa e Inteligência de Dados evidenciou que sete em cada 10 mulheres brasileiras abriram mão da saúde física ou de hobbies em prol do trabalho. O estudo ouviu 1.203 mulheres que trabalham em grandes empresas e multinacionais.
O excesso de demandas, com obrigações profissionais, domésticas e de cuidado com a família estão por trás do sufocamento da criatividade e do lazer feminino. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022 mostraram que, semanalmente, as mulheres dedicavam 9,6 horas a mais do que os homens aos afazeres domésticos e aos cuidados de pessoas.
Para a psicóloga caxiense Amanda Favero, cujo trabalho é voltado à autoestima feminina e à escrita terapêutica, a construção da mulher na sociedade também impacta na dedicação a atividades não remuneradas.
Os homens são socializados para se conhecer, para colocar energia e tempo nas suas coisas. As mulheres, por outro lado, acabam colocando a energia delas nos relacionamentos amorosos
AMANDA FAVERO
Psicóloga
— A Valeska Zanello, psicóloga e pesquisadora de gênero, diz que na nossa cultura os homens aprendem a amar muitas coisas e as mulheres aprendem a amar os homens. Os homens são socializados para se conhecer, para ter os hobbies deles, para viver, para colocar energia e tempo nas suas coisas. As mulheres, por outro lado, acabam colocando a energia delas nos relacionamentos amorosos e para o cuidado com filhos e familiares. A mulher, então, vai ficando em último plano na própria vida — sinaliza.
A falta de autoconhecimento é outra questão que chega às consultas, segundo Amanda, que explica que algumas das pacientes confessam não saber os próprios gostos e têm dificuldade de viver novas experiências. Para a profissional, a mudança deve começar pelo mais óbvio, com a criação de consciência de que as mulheres não são ensinadas a amar e cultivar atividades de lazer.

Dentre os benefícios de compartilhar momentos com outras mulheres, estão, para Amanda, o fortalecimento da autoestima, a redução do estresse e da ansiedade, além de um olhar mais maduro e exigente para os relacionamentos, sejam amorosos ou não.
— É muito importante termos momentos leves, de diversão, que sirvam também para o autoconhecimento. Assim, vamos nos nutrir, nos fortalecer e isso vai ajudar nas nossas escolhas — finaliza a psicóloga.
"Dificilmente alguém vai sair de lá sem sentir algo"

Mais do que imagens, tesoura, cola e papéis, o Ateliê de Recorte e Colagem representa um espaço de transformação, trocas e fortalecimento de mulheres. Criada pela arteterapeuta e arquiteta Giovana Santini, 49 anos, e pela pedagoga e estudante de psicopedagogia Júlia Soso de Azevedo, 26, a proposta está na terceira edição em Caxias do Sul, reunindo mulheres de 18 a 80 anos.
A proposta da dupla é que o público feminino viva uma experiência diferente da rotina diária, mas sem que o momento se torne uma demanda a mais. Assim, quem chega ao ateliê não tem nenhuma preocupação a não ser a de viver o momento. As organizadoras fornecem as imagens previamente recortadas, papel, tesoura, canetinhas, entre outros materiais extras. Enquanto conversam e criam, as mulheres podem se servir de petiscos e bebidas.

— O ateliê é todo pensado para causar alguma transformação na pessoa. Dificilmente alguém vai sair de lá sem sentir algo, porque não é uma coisa sem sentido — aponta Júlia.
Engana-se também quem pensa que para participar é preciso ter altas habilidades, ser criativo ou ainda ter companhia de amigas ou familiares. As mulheres são divididas em mesas e convidadas a socializar, sempre com o olhar atento e a condução da dupla.
Para Giovana, é um ambiente democrático, de autopermissão e de construção de identidade.
As atividades expressivas, de um modo geral, vão liberando a nossa intuição
GIOVANA SANTINI
Arteterapeuta e arquiteta
— As atividades expressivas, de um modo geral, vão liberando a nossa intuição, que é uma coisa que a gente às vezes vem perdendo, ou não validando, ou não escutando. Queremos mostrar para elas que os hobbies têm um papel importante dentro da nossa vida — diz a arteterapeuta.
Participante do primeiro ateliê, em novembro do ano passado, a psicóloga Camila Dallalba Preto, 31, conta que foi motivada pelo desejo de fazer atividades em grupo com outras mulheres.
— Eu sinto sede de grupo, de me reunir entre mulheres e fazer algo terapêutico. E encontrar e usar uma veia artística, uma veia lúdica, foi muito especial. O ateliê foi uma porta de abertura para essa possibilidade de encontro com outras mulheres — acredita a psicóloga.
Grávida de 28 semanas do filho Vicente, Camila retratou o período simbólico que está vivendo na colagem:
— Foi muito gostoso, porque eu entrei numa espécie de meditação, como se eu conseguisse me concentrar puramente naquilo. E ali eu consegui expressar algo que ainda não tinha encontrado em palavras. Encontrei imagens que retrataram esse meu renascer.
Antes da perfeição, o acolhimento e o autocuidado

Mesmo apresentando a parte técnica durante as oficinas do Ateliê Dengo, a liberdade para que cada pessoa explore e crie seu próprio caminho durante a experiência é o maior objetivo da iniciativa. Criados pelas estudantes de arte visuais Maria Luiza Maraschin Santos e Larissa Fogaça, os encontros estimulam um momento de autoconhecimento e autocuidado que muitas mulheres não conseguem ter por conta da rotina.
As experiências conseguem proporcionar uma troca entre as proprietárias e as participantes, que muitas vezes estão realizando algo novo pela primeira vez e também criando novas conexões. No ateliê, o importante não é focar em atingir a perfeição, mas, sim, ser um processo de autoconhecimento, que não exigirá tanta cobrança. A atividade tem o objetivo de ser um momento de fluidez, que permita que a pessoa se solte.
O medo e o receio são sentimentos presentes nas mulheres que participam sozinhas das oficinas pela primeira vez, mas logo que chegam até os locais, as conexões já começam a se criar. A estudante de design Gabriela Miola é um exemplo de quem superou as sensações e se encorajou a participar, mesmo que só.
— Eu estava nervosa, receosa e com dúvida se eu iria conseguir aproveitar bem a experiência. Mas consegui aproveitar muito mais por ter ido sozinha, já que tive mais contato e interação com as pessoas, já que tinham várias que estavam sozinhas. Isso torna a experiência ainda mais única — conta Gabriela.

Reconexão e descoberta de novos hobbies
As experiências imersivas proporcionadas pela Soho Art, fundada pela estudante Gabriela Ferreira, têm como objetivo promover momentos destinados para o público feminino se reconectar e se expressar em diferentes áreas, mas principalmente com a arte.

Para Gabriela, muitas vezes, as atividades praticadas por mulheres são subestimadas, vistas como fúteis ou infantis.
— É um lugar de acolhimento, pelo fato de fazermos uma coisa que, numa sociedade patriarcal, sempre é muito julgada — diz.
A proprietária da Soho trouxe a experiência para Serra depois de vivenciar ateliês imersivos no tempo em que morou na Argentina. O primeiro evento com vinhos e cerâmica ocorreu em 2023, e, diante dos diversos relatos positivos, a Soho proporcionou mais momentos similares, como recorte e colagem, pintura em tela, entre outros.

Por conta da rotina exaustiva, focada em casa e trabalho, as mulheres, em muitos casos, não conseguem conciliar um momento para cuidar de si mesmas. Pensando nisso, a Soho cria um ambiente acolhedor e transformador, que permite esse contato com o novo. Gabriela conta que após as participações nas oficinas, muitas mulheres conseguiram descobrir um novo hobby, seja na cerâmica ou nas pinturas.
— A gente fez uma experiência de Dia das Mães, no ano passado, em parceria com a Nori, que é uma marca de velas e aromatizadores. As velas vinham em um pote de cerâmica e a ideia era pintar a cerâmica. Nesta edição, o ingresso valia por dois e aí a pessoa trazia sua mãe. Foi uma experiência linda. Ver as filhas se dedicando para as mães e as mães se dedicando em criar algo legal e bonito para as filhas. Foi um negócio muito especial. Foi, assim, um abraço no coração. Ali eu consegui ver todo aquele desejo e aquele amor que a gente colocou no projeto sempre — conta Gabriela.