Qual o papel das grandes vinícolas de Bento Gonçalves em relação aos 207 safristas da uva encontrados em situação análoga à escravidão em 22 de fevereiro? Quantos trabalhavam para cada uma delas? A reportagem consultou o Ministério do Trabalho e as assessorias das próprias fabricantes de vinho e constatou: mais da metade dos trabalhadores localizados em condições degradantes num alojamento da Serra (em sua maioria, baianos) foi empregada para colher ou descarregar frutas a serviço das três empresas do setor.
Dos homens resgatados pela força-tarefa de policiais e fiscais do trabalho, 109 atuavam na colheita para as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, que estão entre as maiores produtoras da Serra. As outras 98 pessoas que pernoitavam na pousada insalubre colhiam para 23 produtores rurais independentes.
Os 207 safristas, quando ouvidos por fiscais do trabalho e policiais, relataram que não receberam o salário prometido e que estavam submetidos a uma rotina de comida rançosa, banho frio, jornadas de trabalho de até 12 horas diárias e endividamento constante para comprar materiais de higiene e alimentos, que eles mesmos tinham de adquirir num mercado indicado pela própria empresa, a preços exorbitantes, porque não lhes foi fornecido nem água para tomar na lavoura.
Asseguram ainda terem sido agredidos ao reclamarem das condições de trabalho. Os trabalhadores contaram que eram impedidos de deixar o trabalho em virtude dessas dívidas. E que suas famílias que ficaram na Bahia também eram alvo de ameaças.
Os 207 eram contratados da empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, gerenciada também por um baiano, Pedro Santana, que se especializou em fornecer mão-de-obra para empresas da serra gaúcha. A pousada pertence a um empresário de Bento Gonçalves, Fábio Daros. Os dois são investigados pela Polícia Federal por, supostamente, manter pessoas em situação semelhante à escravidão.
Já as vinícolas podem responder, solidariamente, por infrações trabalhistas e, possivelmente, a pedidos de indenização formulados por advogados dos safristas, conforme autoridades consultadas pela reportagem. No âmbito criminal a possibilidade de indiciamento é pequena, porque os depoimentos mencionam especificamente problemas relativos aos contratos da terceirizada (Fênix) e da pousada. E os contratos trabalhistas eram com essa empresa, não com as fabricantes de vinho.
As três vinícolas negam com veemência que soubessem das más condições da pousada e da situação de endividamento dos trabalhadores. Em nota, a Garibaldi afirma que tinha contrato para apenas 15 trabalhadores. A Salton, também em nota, diz que contratou 14. A Aurora admite ter contratado 80 safristas, por intermédio da Fênix, mas para descarregar caminhões, não colher frutas.
Contrapontos
O que diz a vinícola Cooperativa Garibaldi:
A empresa afirma repudiar qualquer prática que afronte a dignidade humana e se solidariza com os 15 trabalhadores que atuaram para a vinícola. Promete também, entre outras providências, aprimorar a política de serviços terceirizados, aperfeiçoar a seleção de prestadores de serviço e implantar auditorias sistêmicas nesses prestadores.
O que diz a Salton:
A empresa, que tem 112 anos, informa que tomou uma série de providências, entre elas:
- Revisão de todos os processos de seleção e contratação de fornecedores, implantação de critérios mais rigorosos e que coíbam qualquer tipo de violação aos dispositivos legais, incluindo direitos humanos e trabalhistas.
- Estruturação de um cronograma para a realização de auditoria sobre práticas trabalhistas junto aos fornecedores e prestadores de serviços de forma recorrente e sistematizada.
- Contratação de auditoria independente externa para certificar as práticas de responsabilidade social.
- Ampliação e divulgação de canais de denúncia e ampla disseminação de códigos de conduta e ética em nossa cadeia produtiva.
O que diz a Cooperativa Vinícola Aurora:
"No início do século passado, algumas famílias italianas cruzaram o Atlântico à procura de dias melhores. Nas malas, poucas peças de roupa, uma ou outra foto desbotada, muita coragem e um sonho: refazer a vida em um país estranho. A Vinícola Aurora nasceu desse sonho. Desse sonho e de muito trabalho", diz a vinícola em nota, na qual pede desculpas aos trabalhadores vitimados pela situação e diz que tem o compromisso de não repetir erros. E promete implementar mudanças na relação com os parceiros.
O que diz a Fênix:
Em sucessivas entrevistas, os advogados da empresa negam qualquer situação de trabalho análogo à escravidão. E garantem que a empresa cumpre à risca a legislação trabalhista.