"Milena, me ajuda", gritava João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, se referindo à esposa Milena Borges Alves, enquanto era espancado até a morte. O triste desfecho teria iniciado com uma discussão, na quinta-feira à noite, dentro do hipermercado Carrefour, na zona norte de Porto Alegre. Enquanto Milena pagava a conta no caixa, o marido saiu do supermercado acompanhado dos seguranças do estabelecimento. Milena pagou, guardou a carteira na bolsa e caminhou em direção ao exterior da loja. Foi quando ela encontrou João Alberto, no chão, sangrando. Milena tentou socorrê-lo, mas disse ter sido impedida por funcionárias do Carrefour. Acuada, chorando e gritando, em desespero, a esposa viu o marido morrer, enquanto ele sussurrava: "Milena, me ajuda".
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Em reportagem do jornal Zero Hora, o promotor de justiça André Gonçalves Martinez se manifestou na Justiça sobre a prisão em flagrante de dois vigilantes brancos envolvidos na morte de João Alberto, negro. O parecer foi pela conversão em prisão preventiva do segurança Magno Braz Borges, que possui carteira nacional de vigilante, e do policial militar Giovane Gaspar da Silva, que não tinha registro para atuar como segurança, informou a Polícia Federal.
— Se trata de um caso de violência desmedida e desnecessária utilizada pela segurança do estabelecimento. Ficava evidente a previsibilidade do evento morte — diz o promotor.
No caso da motivação pelo preconceito racional, o promotor fez questão de repudiar qualquer forma de racismo. Explica que há possibilidade do enquadramento.
— É preciso se se tenha calma para que isso venha ao final das investigações. Trata-se de um inquérito, onde houve uma autuação. E ainda há atos que precisam ser realizados para que se tenha uma visão ao final, mas é uma possibilidade que será analisada, a de que dentro da motivação haja a questão do preconceito racial — ressalta Martinez.
A morte de João Alberto ainda tem muitas questões não esclarecidas. No entanto, ativistas do movimento negro têm insistido de que o espancamento que resultou na morte de João Alberto deva ser tratado como um ato de racismo. Inclusive, o presidente do Conselho Municipal da Comunidade Negra (Comune), de Caxias do Sul, Antônio Jorge da Cunha, relaciona o homicídio de João Alberto ao de George Floyd, ocorrido no dia 25 de maio, nos Estados Unidos. Ambos foram asfixiados por profissionais de segurança.
O inquérito está com o juiz plantonista Cristiano Vilhalba Flores para decisão. Depois, o caso será encaminhado para tramitação na 2ª vara do júri de Porto Alegre e será conduzido pela juíza Cristiane Zardo. As varas do júri são responsáveis por julgar crimes dolosos contra a vida e aqueles que lhe forem conexos, consumados ou tentados. O flagrante foi por homicídio triplamente qualificado: motivo fútil, asfixia e recurso que impossibilitou a defesa da vítima.
A Polícia Civil tem 10 dias para concluir o inquérito por ter suspeitos presos. O Ministério Público terá cinco dias após o término do trabalho policial para apresentar a denúncia.
No Dia da Consciência Negra, homens e mulheres envolvidos na luta por direitos de igualdade, apesar de tristes e sensibilizados, acreditam que o homicídio deveria ser tratado como racismo. Durante a leitura dos depoimentos a seguir, fica muito claro a indignação, sobretudo com a brutalidade da morte, com requintes de crueldade. Há grupos mobilizando uma manifestação que deve ocorrer em Caxias do Sul.
"Aonde vamos parar com tudo isso? Aonde, me diz? Esse é um só mais um dos casos que vem a púbico. Já parou pra pensar no que acontece em favelas do Brasil, todos os dias e que não é divulgado? Nossa luta é constante. Não podemos parar de lutar, isso não vai nos calar. Eu jamais imaginaria presenciar uma cena dessa, ainda mais na véspera do Dia da Consciência Negra, uma data de reflexão pra todos nós. Dó muito e machuca. Isso poderia ter acontecido comigo ou com outro jovem negro".
Antônio Jorge da Cunha, 57, presidente do Conselho Municipal da Comunidade Negra (Comune)
"De onde veio tanta raiva neles? É um absurdo pensar que uma pessoa apanhou até a morte. Até pouco tempo eram os escravos que apanhavam até a morte. No entanto, sou otimista, houve avanços, sim. Até pouco tempo atrás, víamos pessoas negras morrerem e ninguém comentava nem era noticiado. Hoje, pessoas negras morrem, por motivos fúteis, e vai pro jornal, há uma passeata, há uma mobilização. Claro, ainda comparado com os EUA é um movimento pequeno ainda, mas já há mobilização. Precisamos ter atos mais contínuos contra o racismo. É hipocrisia dizer que essa morte não é por racismo. Existe racismo, sim, no Brasil. Racismo é crime inafiançável, por isso não vemos isso registrado em Boletim de Ocorrência".
Alessandra Pereira, 48, gerente da Coordenadoria da Promoção de Igualdade Étnico Racial, da prefeitura de Caxias do Sul
Fico muito triste, porque é chocante. Eu estava dizendo a algumas pessoas, com quem conversei sobre o assunto, que me sinto amarrada, porque são situações que tu não sabe o que fazer. Protestar, a gente protesta. Reclamar, a gente reclama. Mas o racismo estrutural é muito forte. É lamentável. É muito triste. Parece que ninguém ouve. E justamente um dia antes da Consciência Negra, em um momento que Caxias elege três vereadores negros. A população quer mostrar alguma coisa. Mas aí tiram a vida de um ser humano dessa forma? Creio que avançamos pouco. São vários homens e mulheres negros que sofrem violência no Brasil.
Juçara Quadros, 62, integrante do Comune, Movimento Negro Unificado e Marcha das Mulheres
"O vídeo é horrível. Mostra uma violência para matar. Nos EUA tiveram protestos. E aqui? Será que, no Brasil, teremos de esperar por protestos para as coisas mudarem? Isso é a demonstração de que estamos com uma doença social muito grave. Eu pergunto que tipo de educação antirracista os funcionários de segurança receberam? Se a sociedade toda não tomar essa responsabilidade pra si, negros vão continuar morrendo. Tem de boicotar, sim, o Carrefour, tem de mexer no bolso dessas empresas".
Gabriela Oliveira, 32, autora de Por um mundo com menos racismo
Eu já passei por uma situação idêntica à dele, há uns 4 anos, em um supermercado aqui em Caxias do Sul. Eu e um amigo fomos seguidos por um segurança o tempo todo. Discutimos com o segurança, mas naquele dia acabei deixando as compras ali no meio do corredor e fui embora. Mas na hora em que vi a morte do João Alberto, me veio na cabeça a mesma cena. E pensei que poderia ter sido eu a morrer. Já desabei várias vezes e chorei muito, é muito triste, sabe. Essa luta contra o racismo, que é diária, muitas vezes se torna solitária.
Miriam Machado, 48, funcionária pública
Infelizmente, não vejo nada de anormal, que não aconteça a cada 24 minutos, quando um negro é morto no Brasil. Eu diria que o João é só mais um João. Porque daqui 24 minutos vai outro. Já conseguimos grandes avanços. Conseguimos pautar a área da educação e estamos conseguindo também na política. E, futuramente, teremos de pautar a área da segurança pública, porque nossos órgãos repressivos são voltados para atuar contra a classe negra e pobre. Ou ainda, tem sempre uma bala perdida, mas parece que ela sempre "escolhe" uma cor para atingir.
Sérgio Ubirajara, 60, ativista do movimento negro em Caxias do Sul
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