Mesmo com a abertura de dois hospitais de campanha nas próximas semanas, a rede hospitalar de Caxias do Sul não suportaria a pandemia do coronavírus e centenas de pessoas correriam o risco de ficar às margens do tratamento. É o que mostra uma análise matemática de um possível cenário de descontrole na cidade, o que forçaria Caxias a tomar decisões dramáticas como na Itália, em que as equipes médicas precisaram escolher quais pacientes seriam salvos. O risco de crescimento geométrico do contágio obrigará a criação de muito mais do que os 100 novos leitos de enfermaria previstos no cronograma da prefeitura e, no mínimo, o dobro de vagas em UTIs. Também é urgente investir na compra de respiradores e outros equipamentos, gerenciar a escassez de recursos e ampliar as quantidade de profissionais.
Esse cenário é baseado na possibilidade de a cidade ter 51 mil infectados até o final de agosto, segundo estimativa da prefeitura de Caxias do Sul. O método de cálculo é o mesmo do governo do Estado, em que 10% da população pode desenvolver sintomas da doença. Desse total, conforme o município, 82% serão casos leves, que podem ser tratados em casa, o que totaliza 41 mil pessoas. Do restante, 15% dependerá de internação hospitalar, ou seja, 7.668 pessoas. Sobre esse grupo hospitalizado, 4,5% precisaria de leitos na UTI – 345 pacientes com sintomas graves e muito graves.
O dilema é a estrutura atual, pois a cidade tem 100 leitos de UTI e a rede, com a estrutura e capacidade de investimento, teria condições de abrir apenas 10 novos leitos de UTI pelo Sistema Único de Saúde (SUS). É um quadro de colapso porque os hospitais de Caxias atendem outros 48 municípios da região que, inclusive, flexibilizaram decretos de confinamento e estão reabrindo o comércio e outras atividades, caso de Flores da Cunha, Canela e Vacaria. Na prática, a rede terá de suportar também os reflexos da Serra.
Até o final de agosto, a situação pode ser pior do que a própria projeção do município. Isaac Schrarstzhaupt, gestor de projetos e cientista de dados, diz que o cálculo do município é diferente das estatísticas mundiais, como a do Harvard Global Health Institute (site globalepidemics.org). Levando em conta os relatórios iniciais em outros países, o instituto vem projetando que 4,4% dos infectados podem precisar de uma UTI, o que exigiria a oferta de 2.244 vagas de tratamento intensivo ao longo de quatro meses em Caxias.
– A estatística mundial considera que 75,6% terão sintomas leves ou nenhum sintoma, 20% vão depender de internação e 4,4% de UTI, mas sempre se considera isso sobre o total de infectados – alerta Isaac, que vem se debruçando nos últimos dias sobre os dados da pandemia mundial e analisou as possibilidades a pedido da reportagem.
As projeções não afirmam que, de fato, Caxias terá 51 mil infectados, afinal os estudos vêm sendo revisados quase diariamente em todo o planeta e há variações do comportamento epidemiológico de um país para o outro. A única convicção é de que um cenário menos dramático seria alcançado se toda a população adotasse as recomendações de distanciamento social pelos próximos dias. Em tese, o sistema hospitalar atual e os dois hospitais de campanhas em vias de criação dariam conta da demanda, com dificuldades, é claro, mas sem o peso dos estimados 7,6 mil pacientes internados em apenas 120 dias. Favorecido pelas ações preventivas entre a população, esse contingente de doentes só chegaria ao nível máximo no final do ano ou no ano seguinte, num equilíbrio entre pessoas curadas e sob tratamento. Seria um atendimento mais esparso e a sobrecarga do sistema hospitalar não seria tão assustadora.
– Os estudos mostram que o isolamento é ideal para que não ocorra tudo de uma só vez, é o que chamamos de achatamento da curva de contágio – justifica a médica infectologista Andréa Dal Bó, diretora das vigilâncias em Saúde de Caxias do Sul.
Entenda por que isso aconteceria
O gestor de projetos e cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt fez projeções sobre os cálculos da prefeitura e aponta que os números são diferente das estatísticas mundiais.
Abaixo, confira como seriam os números se levando em conta os relatórios iniciais em outros países, que projetam que 4,4% dos infectados podem precisar de uma UTI (mais de 2 mil), ao contrário dos da prefeitura que considera que apenas 15% dos forem internados precisarão de vagas nas UTIs (ou seja, 345).
:: No pior cenário estabelecido pela prefeitura, com 51 mil infectados e 7,6 mil pacientes hospitalizados no intervalo de quatro meses (de abril a agosto), o esgotamento seria percebido em diferentes momentos.
:: Conforme o cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, a rede chegaria ao colapso no início de agosto, quando o número de infectados na cidade já passaria de 50 mil pessoas.
:: Na estatística, Isaac considera que um paciente hospitalizado demoraria oito dias para liberar o leito. No início da segunda semana de agosto, ainda haveria 2.799 pessoas no hospital. É aí que a conta não fecha e se vislumbra uma crise sem precedentes.
:: Hoje, somando leitos privados e do SUS, Caxias tem 1.425 vagas, segundo a Secretaria Municipal da Saúde, que utiliza a base de dados do Ministério da Saúde. Em abril, outros 100 leitos de dois hospitais de campanha devem ser abertos na cidade, o que levaria o município a ter 1.525 leitos no total.
:: Faltariam, portanto, 1.274 vagas para pacientes com sintomas médios no auge da crise.
:: A análise reforça uma questão ainda mais problemática porque não será possível destinar todos os leitos apenas para pacientes de coronavírus. A rede tem de atender outros tipos de enfermidades de pacientes de Caxias e da região. Das 1.425 vagas atuais, 668 são do SUS. Na sexta, dia 27, a taxa de ocupação média nos três hospitais da rede (Virvi Ramos, Pompéia e Geral) era de 62%, restando livre em torno de 38% dos leitos de enfermaria – ou cerca de 250 vagas abertas a partir do cancelamento de cirurgias eletivas no esforço contra o coronavírus.
:: No pior cenário, as UTIs enfrentariam o caos ainda antes. Caxias tem 100 vagas na rede privada e pública, que esgotariam em julho, considerando a média de 10 dias de ocupação. Os cálculos de Isaac apontam que no final de agosto, haveria 189 pacientes com quadro de UTI, um déficit de 89 casos em relação às vagas disponíveis.
:: A situação muda para um cenário menos danoso. É até possível que se extrapole os 50 mil infectados, mas a restrição de circulação de pessoas faria com que os doentes fossem aparecendo aos poucos e não todos de uma vez, o que evitaria o esgotamento da rede de atendimento.
“É uma análise bondosa”
Contestada nas redes sociais, a projeção de 51 mil infectados seria até suave diante do que pode acontecer, na visão de Isaac Schrarstzhaupt.
– É uma análise bondosa por causa da taxa de contaminação que está acontecendo em outros países, que é mais ou menos uma pessoa contaminando de duas a três pessoas. Vai multiplicando por três e depois de quatro, cinco, rodadas, o número está bem alto. Claro, que o pior cenário seria todo mundo na rua e seria estranho então que só 10% da população se contaminasse – avalia.
Ele também traça um panorama sobre a situação de Wuhan, capital da província da China central e berço da pandemia. Muitas pessoas contrárias ao confinamento em massa usam o exemplo para mostrar que, mesmo lá, o contágio teria atingido um percentual pequeno, o que não justificaria a adoção de regras tão rígidas no Brasil.
– A província tem 11 milhões de habitantes e 100 mil casos. Será que os outros foram efetivamente blindados pela quarentena? Ou todo mundo pegou e só 100 mil foram testados? Ou as mortes são relacionadas a 11 milhões e a letalidade é baixíssima? Mas o que está se demonstrando em países que não tiveram isolamento social, como Itália, Espanha e Estados Unidos é que está havendo aumento de casos e os hospitais estão sofrendo para fornecer suporte – aponta Isaac.
Estudo liderado pelo Imperial College de Londres aponta o Brasil como um país que pode perder 1,15 milhão de vidas se nenhuma estratégia de isolamento e enfrentamento for concebida. Com supressão mais rigorosa, o número pode ser reduzido para 44,2 mil óbitos.
– Sobre os números de 51 mil casos, é dado estatístico mundial. Analisando os casos assintomáticos, seria muito maior a quantidade de infectados. O problema é que o assintomático se sente bem e vai passar para os outros – aponta Andréa Dal Bó.
“No pior cenário, teríamos que criar mais 30 leitos de UTI”
Como o cenário ainda é de cautela, é difícil apontar como o poder público agiria, na prática, numa situação tão grave como a que aflige o norte da Itália, com milhares de mortos. A prefeitura trabalha com planos de contingência estabelecidos a partir de um plano estadual. Marguit Weber Meneguzzi, diretora do Departamento de Avaliação, Controle, Regulação e Auditoria da Secretaria Municipal da Saúde, explica que o planejamento prevê o aumento proporcional de leitos conforme o surgimento de casos.
Em entrevista à Gaúcha Serra, o secretário da Saúde de Caxias, Jorge Olavo Hahn Castro, revelou que, inicialmente, Caxias do Sul receberá 22 leitos de UTI adicionais no SUS, a serem equipados pelo Estado. É um aumento de 65% no número de leitos, que somam 35 atualmente, segundo Marguit. Mais leitos poderão ser adicionados se houver necessidade.
– Considerando o pior cenário, teríamos que criar mais 30 leitos de UTI só considerando a população de Caxias do Sul – diz Marguit.
A diretora ressalta que os leitos do SUS são referência macrorregional para atendimentos de alta complexidade em cardiologia, neurologia, traumatologia e oncologia e que os leitos de UTI, além destas referências, são retaguarda para atendimentos de média complexidade regional.
Questionada sobre quais outros equipamentos podem fazer a diferença numa pandemia, a diretora aponta, por exemplo, os itens de UTI como monitor multiparâmetro, bombas de infusão e ventiladores. No Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (Cnes), os hospitais caxienses dispõem de 265 respiradores – o necessário, com milhares de infectados, seria ter pelo menos o dobro.
– Em se tratando de pandemia, nenhuma rede está estruturada para atendimento, por isso as medidas de contingência que estão sendo adotadas com cancelamento de procedimentos eletivos e liberação destes leitos para internações de covid-19, estruturação de leitos extras e hospital de campanha – complementa Marguit.
Ela cita outras estruturas complementares, como as barracas de triagem nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs) de maior parte e nas Unidades de Pronto-Atendimentos (UPAs) Zona Norte e Central.
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